Sunday, October 7, 2007

Diferentes faces da fusion

Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 22 de Junho de 2004 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa"

Diferentes faces da fusion, parte 1
Arnaldo DeSouteiro

Vertente jazzística odiada pelos puristas, justamente por ter renovado e revigorado o jazz no início dos anos 70, a fusion continua sendo atacada pelos chatos de plantão. Até hoje, muitos críticos descarregam suas frustrações nos discos, produtores e artistas mais representativos desta corrente, cometendo a irresponsabilidade criminosa de confundir ao invés de explicar, não raro colocando seus maiores expoentes (Miles Davis, Weather Report, Mahavishnu Orchestra) e meros medíocres (Kenny G, Spyro Gyra, Rippingtons) no mesmo patamar, como se a fusion fosse um saco-de-gatos. Não fazem distinção entre os catálogos da CTI (principal selo independente na fase áurea do gênero, entre 70 e 76) e da GRP (caracterizado pelo abandono da ousadia criativa, substituida pelo som anêmico e pasteurizado depois rebatizado de smooth-jazz). E, principalmente, ignoram a importância da fusion ao arrebanhar milhares de novos consumidores para o mercado jazzístico.

Ignoram ainda as diferentes faces da fusion, retratadas em alguns DVDs distribuidos agora no mercado brasileiro pelo selo paulista ST2 (www.st2.com.br).
A diversidade de direcionamentos vai do pesado jazz-rock futurista do quinteto Steps Ahead - destacando Michael Brecker e Mike Stern como solistas - ao clima bem mais ameno e “cool” do quarteto Fourplay, que incorpora elementos do funk. Atmosfera similar a do vibrafonista Roy Ayers, que sempre trafegou entre o jazz e o pop, enquanto o guitarrista George Benson – em seu primeiro vídeo não-pirata – nunca viu problema em unir elementos de ambas as linguagens. Sem grilos e com muita qualidade. Também livre de culpas, o batera Steve Gadd opta por uma fusion calcado no, digamos, rhythm & blues de raíz (existe isso?), passeando por Stevie Wonder, Bob Dylan e Procol Harum.

Show de versatilidade

Vejamos logo o caso de Gadd, pejorativamente rotulado de “músico de estudio” apenas porque consegue tocar qualquer estilo maravilhosamente bem. Em meados dos anos 80, quando já era chamado de “Steve God” no Japão e contava com centenas de gravações como sidemen, o rapaz resolveu formar seu próprio conjunto. Neste DVD, batizado “The Gadd Gang Live” (59m), ele mostra o repertório de dois discos lançados pela Sony, liderando Richard Tee (piano acústico & órgão Hammond), Eddie Gomez (contrabaixo, numa performance de arrepiar os cabelos de quem só conhece suas atuações com Bill Evans), Cornell Dupree (guitarra) e Ronnie Cuber (sax barítono). Co-produzido por Kiyoshi Itoh, foi gravado ao vivo num dos mais badalados clubes de jazz de Tokyo, o Pit Inn, no bairro de Roppongi, em 7 de junho de 1988.

A bandaça começa parecendo que vai fazer um show normal, tipicamente jazzístico, abrindo os trabalhos com “Things ain’t what they used to be”, hit que Mercer Ellington escreveu para a orquestra de seu papai. Mas logo em seguida Gadd ataca “I can’t turn you loose” (Otis Redding) de forma endiabrada. A pauleira prossegue em “Watching the river flow” (Dylan), antes de mergulhar no universo da Motown via “My girl”, unida a “Them changes” do craque Buddy Miles. Com uma atitude tipo “estou tocando minhas músicas favoritas; algum problema?”, passa por “Whiter shade of pale” (clássico do Procol Harum) e chega ao ponto alto do show na longa performance de “Signed, sealed, delivered I’m yours” (Stevie Wonder), abrigando uma sucessão de solos fantásticos: Cuber, Gomez (ninguém toca funk no baixo acústico tão bem como ele) e Gadd, que antes de seu improviso ainda apronta faiscante duo de bateria & piano com o saudoso Richard Tee. No bis, o escracho final (no bom sentido), juntando “Honky tonk” (Bill Dodgett) com “I can’t stop loving you” (hino romântico de Ray Charles).

Super Benson

Outro mestre a exibir igual versatilidade, George Benson faz um verdadeiro espetáculo - daqueles em que o sujeito tanto pode ir com a esposa quanto com a mãe ou com a amante, ou até com a amante da esposa – em “Absolutely live” (90m), filmado (sabe-se la porque!) na pacata Belfast, na bucólica Irlanda, em 2000. O show, que agradaria em cheio até num cassino em Las Vegas, é dividido em quatro partes. Na primeira, acompanhado pela BBC Big Band, mostra seu talento vocal em standards tipo “All of me”, “I only have eyes for you” e “Beyond the sea”, versão inglesa para “La mer”, do chansonier Charles Trenet. Depois, Benson chama ao palco o pianista Joe Sample, ex-Crusaders, para reforçar seu grupo em faixas instrumentais do álbum “Absolute Benson”, além de ótimas leituras de “Lately” e principalmente “The ghetto” (Donny Hatthaway), quando Sample passa para o Fender Rhodes.

Adentram então as cordas para o eclético momento ternura, que vai da melosa baladinha “In your eyes” ao sofisticado “Moody’s mood”, ponto alto vocal, antecedendo um brilhante “Danny boy”, seu grande momento como guitarrista. O mega-hit “This masquerade” e a faixa-título do LP “Breezin’”, ambas com a Ulser Orchestra reproduzindo os arranjos originais do gênio Claus Ogerman, servem como transição para o baile iniciado por “Love x love”, seguindo-se “Turn your love around” (a esta altura, várias senhoras de meia-idade já invadiram o palco para dançar e tirar uma casquinha do elegante astro afro-americano), “Give me the night” e o inevitável encore com “On broadway”. Antes de sofrer um ataque sexual mais direto, George sai de cena, deixando os fãs saciados. Exceto as insaciáveis senhoras, os verdadeiros canhões do IRA. De quebra, um “making of” com trechos de ensaios, entrevistas etc.

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