Monday, September 24, 2007

As caixas de Miles (Miles Davis' box sets)




Texto escrito por Arnaldo DeSouteiro em 29 de Setembro de 2004 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa".

As caixas de Miles
Arnaldo DeSouteiro


Um certo Miles Dewey Davis, que teria completado 76 anos no último 25 de maio, tem algumas das melhores fases de sua multi-facetada carreira – a mais dinâmica, revolucionária e obsessivamente criativa na história do jazz - revisitadas através de valiosas caixas. Cobrindo seu longo período (1955-1984) de associação com o selo Columbia, da antiga CBS, atual Sony, começaram a ser lançadas em 2000, em tiragens limitadas que rapidamente se esgotaram. Agora, alguns desses tesouros reaparecem “comme il faut” pelo selo Legacy, sob a supervisão de Seth Rothstein, Kevin Gore & Steve Berkowitz, mantendo o mesmo padrão técnico e a mesma embalagem das primeiras edições. Graças à riqueza de detalhes informativos e ao grande número de faixas extras, tornam-se indispensáveis até para os fãs que possuem os discos originais.

Davis & Coltrane

Começando pelo começo, a caixa intitulada “Miles Davis & John Coltrane – The complete Columbia Recordings” abriga seis CDs, contendo 58 faixas (18 delas inéditas, totalizando 90 minutos de revelações sonoras estonteantes) dos cinco primeiros anos – e cinco primeiros álbuns – de Miles na Columbia, depois da fase na Prestige, então dirigida por Bob Weinstock. Na verdade, as primeiras sessões do trompetista na nova companhia foram feitas quando ele ainda estava sob contrato com a antiga gravadora, graças a um acordo habilmente costurado por George Avakian, narrado de forma minuciosa pelo próprio produtor em seu texto para o livreto de modestas 115 páginas.

Outros experts em Miles – Bob Blumenthal, Michael Cuscuna e o baterista Jimmy Cobb, participante de várias dessas gravações – também contribuem com linhas fartamente explicativas. Sem contar as dezenas de fotos, uma discografia irrepreensível e, claro, o mais importante: a música! Tudo remixado e remasterizado pelo Grammyado engenheiro Mark Wilder, com quem tive a honra de trabalhar na primeira reedição em CD do antológico “Stone Flower”, de Tom Jobim, nos idos de 1989. Graças a Mark, inúmeros “alternate takes”, e até mesmo trechos de versões abortadas logo no início, foram recuperadas de modo a fornecer o mais amplo painel possível.

A ficha técnica chega ao requinte de informar o horário do início e do término de cada sessão, sabendo-se que às 15:30hs do dia 26 de outubro de 1955, uma quarta-feira, Miles fez sua primeira gravação (curiosamente, um take de “Two bass hit” até então inédito) para a Columbia. Ao seu lado, o quinteto completado por um ainda pouco conhecido Coltrane (tenor), Red Garland (piano), Paul Chambers (baixo) e Philly Joe Jones (bateria). Grupo atuante também em todas as faixas dos LPs “’Round about midnight” e “Milestones”, este último já com o reforço de Cannonball Adderley no sax alto. Depois viriam o histórico “Kind of blue”, lançado em 59 - com a atuação impactante de Bill Evans nas faixas “So what”, “Blue in green”, “Flamenco sketches”, “All blues” - e “Someday my prince will come”, do qual Coltrane participou apenas do tema-título, com Wynton Kelly ao piano, em março de 61.

Sempre em ordem cronológica, entremeadas portanto às sessões de estúdio, aparecem registros usados em compilações ou outros projetos (como o didático “What is jazz”, de Leonard Bernstein, ouvido em rápido diálogo com Miles), além de várias faixas ao vivo – inclusive com Bill Evans no Newport Jazz Festival, em 58, cuja truncada edição no LP “Miles and Monk at Newport”, lançado quatro anos depois, creditava Wynton Kelly no lugar de Evans. Outro erro crasso atribuia ao batera Philly Joe Jones, ao invés de Jimmy Cobb, a participação nas quatro faixas (“If I were a bell”, “Oleo”, “My funny valentine” e “Straight, no chaser”) captadas para o álbum “Jazz at the Plaza”. Agora, todas as informações estão corrigidas.

Miles & Gil

Precioso documento de uma das mais importantes colaborações na história da música, a caixa batizada “Miles Davis & Gil Evans: the complete Columbia studio recordings” reune, em seis CDs, 116 faixas, totalizando mais de seis horas de música. No cardápio, os históricos álbuns “Miles ahead”, “Porgy and Bess” e “Sketches of Spain” na íntegra, acrescido de dezenas de takes inéditos captados entre 1957 e 60, incluindo trechos de ensaios e “alternate versions” do Adágio do “Concierto de Aranjuez”. Uma delas sem Miles, apenas com Gil testando a combinação de timbres na magnífica parte orquestral. Aparecem ainda os encontros dos gênios nos temas que gravaram juntos para o controvertido LP “Quiet Nights”, aquele da linda performance de “Aos Pés da Cruz” (samba composto em 1942 por Marino Pinto & Zé da Zilda, depois imortalizado por João Gilberto).

Apaixonados pelo cantar de João, Miles & Gil começaram a preparar um arranjo para “Corcovado”, jamais concluido. Mas que a Columbia lançou assim mesmo, sem consultar os artistas, pegando 1m18s originários de um ensaio e fazendo uma abrupta emenda com a “tag” de uma “alternate version” de “Aos Pés da Cruz”. Montagem mais bandeirosa, impossível. Ainda assim, é emocionante ouvir Miles refazendo a melodia de Tom, assim como na descarada apropriação indébita da canção folclórica “Prenda Minha”, batizada “Song No.2”, de autoria atribuida a Miles & Gil. Erro que se perpetua a cada reedição, já que ninguém toma providência alguma, e nenhum dos experts convocados para escrever as 198 páginas do livreto – Quincy Jones, George Avakian, Bill Kirchner, Bob Belden & Phil Schaap – jamais ouviu falar em “Prenda Minha”...

Os colecionadores poderão se deliciar ainda com três misteriosas faixas para um projeto nunca terminado com o pianista/cantor/compositor Bob Dorough (“Blue Xmas”, “Nothing Like You” e “Devil May care”, esta sem a participação de Bob!), aproveitadas em discos diferentes, sem a menor justificativa aparente. Aparecem também duas desconhecidas suites: “The time of the barracudas” (63) e “Falling Water” (68). A primeira, encomendada como trilha para a peça homônima de Peter Barnes, encenada na Califórnia, ninguém sabe dizer se foi de fato algum dia usada. A segunda, em atmosfera psicodélica, incorporando piano elétrico Wurlitzer (Hancock), marimba (Warren Smith), guitarra havaiana (tocada pelo baixista Herb Bushler), mandolim (Lawrence Lucie) e guitarra normal (Joe Beck), antecipa as viagens futuras de “In a silent way’, “Bitches brew” etc.

Quinteto infernal

Outra jóia imprescindível, “The Complete Miles Davis Quintet” junta todas as pauleiras gravadas (em estúdio) por Miles ao lado de Hancock, Ron Carter, Tony Williams e Wayne Shorter entre janeiro de 65 e junho de 68. Treze faixas inéditas, correspondendo a noventa minutos de música irrotulável, somam-se às interpretações fantásticas originalmente destinadas aos discos “ESP”, “Miles Smiles”, “Sorcerer”, “Nefertiti”, “Miles in the sky” e “Filles de Killimanjaro”. Com 116 páginas, o livreto é o melhor dentre os preparados para esta coleção de caixas, com preciosos textos de Todd Coolman, Michael Cuscuna e Bob Belden, que dissecam a trajetória do grupo. Belden analisa faixa por faixa, chamando a atenção do leitor para detalhes importantes, ao mesmo tempo em que corrige informações erradas que até então prevaleciam.

O repertório documenta não só a evolução individual dos músicos, como também o aprimoramento do conjunto, que atinge níveis de inacreditável interação telepática em faixas tipo “Gingerbread boy” (de Jimmy Heath), “Footprints”, “Masqualero”, “Nefertiti” e “Pinocchio” – essas quatro não por acaso frutos da mente conturbada de Wayne Shorter, em sua fase áurea como compositor e principal fornecedor de material temático para Miles. Além das faixas dos LPs “oficiais”, há farto material posteriormente compilado para os álbuns “Water babies”, “Circle in the round” (incluindo a longuíssima faixa-título de mais de 33 minutos, pela primeira vez apresentada na íntegra) e “Directions”.

São exemplos já da fase de desintegração do quinteto, não raro contando com as adições de guitarristas (Joe Beck, George Benson, Bucky Pizzarelli), sempre com resultados pífios, a despeito da qualidade de tais músicos. A partir de dezembro de 67, quando Miles iniciou uma nova fase de experiências, volta e meia Hancock surge pilotando protótipos de piano elétricos Wurlitzer e Fender Rhodes, celesta e até um cravo elétrico (!), enquanto Ron Carter troca o baixo acústico pelo Fender que depois abominaria. Rolam climas legais (“Black comedy”, “Stuff”, “Petits Machins”), mas nada comparável à excelência dos registros feitos em 66 e 67. Petardos suficientes para classificar tal instituição como o melhor quinteto da história do jazz. Revogadas todas as disposições em contrário.

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