Tuesday, July 24, 2007

Nem só de jazz vive Montreux



Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 19 de julho de 2007 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa" em 23 de julho de 2007
Nem só de jazz vive Montreux
Lançamentos em DVD trazem shows de Van Morrison, Mike Oldfield, Eric Clapton e Rory Gallagher
Arnaldo DeSouteiro

O mote para o título deste artigo vem do anterior, sobre Carlos Santana, publicado há duas semanas. Em uma parte do texto, comentando o ecletismo da programação de Montreux, escrevi que nem só de jazz vivia o Festival. E que cabia ao público, dentro desta porção não-jazzística, diferenciar as noites de luxo e lixo.

Mostrando, na prática, a versatilidade de estilos sempre almejada por Claude Nobs, fundador e ainda hoje comandante do evento, mais uma safra de DVDs filmados em Montreux chega ao mercado internacional via Eagle Vision, com distribuição no Brasil pela ST2. Entre os astros focalizados, nomes como Van Morrison, Eric Clapton, Mike Oldfield, Rory Gallagher e os grupos Yes, Dixie Dregs e Deep Purple.

Noites de Morrison

Um dos mais interessantes, o DVD-duplo de Van Morrison reúne os shows realizados pelo cultuado cantor/compositor nos anos de 1980 e 1974. A abertura da performance de 80 (a segunda de dezesseis apresentações no Festival) acontece de forma impactante com “Wavelength”, deixando nítida a coesão da excelente banda, que incluía dois saxofones e duas baterias muito bem somadas por David Shaw e Peter Van Hooke, repetindo as históricas dobradinhas de Steve Gadd e Rick Marotta nos anos 70. Fumando enquanto canta (e vice-versa), Morrison abre espaço para solos de Mark Isham no piccolo-trumpet e de Alfred “Pee Wee” Ellis no tenor em “Troubadors”, abrigando viradas de bateria com direito aos roto-toms em voga na época. Lenda-viva da black-music, diretor musical de James Brown em sua fase áurea, Ellis ataca também de saxofones alto e barítono ao longo da noite, enquanto Van se mantém na guitarra.

O tecladista John Allair, que havia acabado de gravar com Morrison no álbum “Common one”, apronta um solo de órgão Hammond, marcado por pandeirola gospel, na longa introdução instrumental para “Spirit”, um dos temas do tal disco ainda inédito naquela ocasião. Na seqüência, uma levada reggae bastante pessoal embala “Joyous sound”, enquanto o solo de sintetizador mistura sons de guitarra havaiana e steel-drums. “Moondance” também se destaca pelo groove contagiante, com solos de piano acústico e sax tenor. Duas baladas movidas a Fender Rhodes, “Haunts of ancient peace” e “Tupelo honey” chamam a atenção neste showzaço de 1h27m, sem contar o bis com “Angelou”.

Com as imagens restauradas e o áudio remasterizado em 2006, a apresentação de 50m do Tio Van em 30 de junho de 1974 – ano em que o Festival foi dividido em três noites de blues e cinco de jazz – transcorre em clima de despretensiosa jam-session. Morrison desembarcou em Montreux (para encerrar a porção blues) apenas com seu violão e sua gaita, além de um imprevisto sax-alto sacado em “Heathrow shuffle”; mas sem guitarra, sem roteiro e sem banda, com Nobs precisando convocar às pressas o tecladista Pete Wingfield, o baixista Jerome Rimson e o batera Dallas Taylor para a efeméride. O show esquenta apenas aos trinta e dois minutos, no tema “Street choir” valorizado pela “pegada” de Pete no piano elétrico Wurlitzer, antes de Van assumir a gaita na instrumental “Harmônica boogie”. Vale frisar que o Festival de 1974 teve noites gloriosas, especialmente a de 6 de julho, com artistas da Fantasy Records, quando Flora Purim, Sonny Rollins e a big-band de Woody Herman levaram o público ao delírio. Edita-las em DVD deveria ser uma prioridade para a Eagle Vision.

Gallagher em ação

Outro DVD-duplo, batizado “The definitive Montreux collection” e totalizando quatro horas e meia de duração, abriga os melhores momentos do saudoso Rory Gallagher (1948-1995) no evento. O guitarrista, cantor e compositor irlandês, devotado ao blues, ao folk e ao rock, participou cinco vezes do Festival como líder. Trechos de quatro delas somam-se à performance integral de 1994, que viria a ser também a derradeira. O DVD começa com o show de 1975, marcado por petardos tipo “Tatoo’d lady”, “Garbage man” e “Cradle rock”. Em 77, ano da invasão do punk, Rory respondeu à altura, detonando “I take what I want” (de Isaac Hayes) e suas próprias “Calling card”, “Bought and sold” e “A million miles away”. “Shin kicker”, “The last of the independents” e “Too much alcohol” são os destaques do show de 79.

Nas músicas de 1985 vemos um Gallagher mais maduro e em melhor forma física do que seis anos antes, optando por uma atmosfera mais intimista, ainda que repleta de rock pesado. Estraçalha no improviso de “Moonchild”, evoca Hendrix em “Bad penny” e reverencia Big Bill Broonzy na sarcástica “Banker’s blue”. Em 1994, Rory estava mais gordo e inchado. Havia adotado uma vestimenta mais sóbria, abandonando o jeans desbotado e o tênis surrado. Mas permanecia implacavelmente furioso na guitarra, como evidenciado ao longo de 80 minutos de show. No medley de “Amazing Grace”, “Walking blues” e “Blue moon of Kentucky”, passa para o violão em duo com Bela Fleck no banjo. Interessante comparar “Moonchild” e “Tatoo’d lady” com as versões dos shows anteriores. Nos “extras”, mais alguns temas filmados em 75, 77 e 85. Emoção pura.

Face roqueira

Mike Oldfield é o próximo a demonstrar a (excelente) face roqueira de Montreux. Em sua única performance no Festival, em 5 de julho de 1981, apesar da postura quase autista, o guitarrista e compositor enlouquece os fãs com temas dos álbuns “QE2”, “Platinum” e principalmente dos discos que fizeram sua fama nos anos 70 – “Ommadawn” e o antológico “Tubular bells”, de 1973, popularizado pelo trecho utilizado no filme “O Exorcista”. A transformação de barbudo gênio precoce do rock (que relutava em fazer shows e vivia trancado nos estúdios) em um mauricinho bem-comportado amante dos palcos, detalhada por Michael Heatley no ótimo texto do encarte, é fascinante. Apoiado por afiadíssima banda – com Tim Cross nos teclados, Rick Fenn no baixo e eventualmente na “segunda guitarra”, mais os bateristas/percussionistas Mike Frye & Morris Pert –, Oldfield esbanja competência. “Punkadiddle”, com elementos de música celta e da new-wave, completa o cardápio.

No dia 10 de julho de 1986, depois de ter dado uma canja no show de Otis Rush na véspera, Eric Clapton fez sua primeira apresentação como líder em Montreux. Liderando um pequeno grande grupo – o tecladista Greg Phillinganes, o baixista Nathan East e um certo Phil Collins como baterista –, optou por um set certeiro e repleto de hits. De lembranças da época do Cream como “White room”, “Badge” (parceria com George Harrison) e o bis “Sunshine of your love”, que debutara no Festival pela voz de Ella Fitzgerald em 1969, a “Crossroads” (febril releitura do blues de Robert Johnson), passando por “Let it rain”, a amaldiçoada “Cocaine” e a indefectível “Layla”, em arranjo de alta densidade.

Sem problemas de ego, Eric convida Collins roubar a cena ao cantar “In the air tonight”, enquanto Phillinganes não dá conta do recado ao assumir os vocais em “Behind the mask”. As agudinhas programações eletrônicas em “Wanna make love to you” e “Tearing us apart” não funcionam bem e soam datadas. Em compensação, há uma excelente releitura de “I shot the sheriff”, de Bob Marley, com viradas mágicas de Collins e um lancinante solo de guitarra de Clapton, transformando-se no melhor momento da noite. Como bônus, “White room”, abertura do show de 1992, que repetiu seis temas de 86 com um conjunto maior: Nathan East novamente no baixo mais Steve Ferrone (bateria), Ray Cooper (percussão), Chuck Leavell (teclados), Andy Fairweather-Low (guitarra) e Katie Kissoon & Gina Foster (vocais).

Em 23 de julho de 1978, o quinteto Dixie Dregs estreou em Montreux tocando apenas composições próprias. Um título como “Country house shuffle” dá uma pista da multiplicidade de influências recebidas por Steve Morse (guitarra), Mark Parrish (teclados), Andy West (baixo), Rod Morgenstein (bateria) e Allen Sloan (violino), que também mesclavam pitadas de jazz-rock, bluegrass e até música celta. Morse preferia definir tal mistureba como “avant-garde country music”. Entre os temas, de intrincadas e velozes passagens, às vezes pecando pelo excesso de convenções, aparecem “Leprechaun promenade”, “Patchwork”, “Wages of weirdness” e uma homenagem a “Átila, o Huno” (406-453). Curiosamente, este é o primeiro DVD da série Montreux a trazer, como “extras”, números filmados fora do Festival. Neste caso específico, aparições do grupo nos programas de TV “Rock concert” em 79 e “American bandstand” em 82, com Mark O’Connor (violino e guitarra), T. Lavitz (teclados) e Alex Ligertwood (vocais em “Crank it up”). Saudável saudosismo.

Legendas:
“Van Morrison: dois shows completos remasterizados em sistema Dolby Surround”
“Os cinco shows de Rory Gallagher em Montreux estão compilados em um DVD-duplo”

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