Tuesday, June 5, 2007

As peripécias do Tio Ed Sullivan





As peripécias do Tio Ed Sullivan
Série de DVDs mapeia a evolução da música pop nos anos 50 e 60
Arnaldo DeSouteiro
Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiros em 15 de Março de 2007 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa" em 19 de Março de 2007

Ed Sullivan apresentou na CBS, durante 23 anos (de 1948 a 1971), nas noites de domingo, um programa semanal de variedades que fez história na TV americana. Empresários e gravadoras travavam uma disputa ferrenha para colocar seus artistas na parte musical. Difícil dizer quem, de renome, não passou por lá. Até mesmo para grupos ingleses como Beatles e Rolling Stones, ter espaço no show do Tio Sullivan era uma questão de honra. Significava conquistar território americano como se estivessem fincando uma bandeira na lua. Bicões com padrinhos fortes eram exceções em um palco que, ignorando a segregação racial que ainda vigorava em outros programas, ajudava a consagrar de James Brown a Stevie Wonder, passando por Ike & Tina Turner, Jefferson Airplane, Mamas & Papas, Marvin Gaye e os principais talentos da Motown.

Embora batizada “Ed Sullivan’s rock’n’roll classics”, a coleção de DVDs fabricada no Brasil pelo selo paulista ST2, incorpora muitos outros estilos, mapeando também a evolução do pop, da soul-music e do rhythm & blues (com todas as suas variantes) nos anos 50 e 60. Quatro títulos já haviam sido comentados neste espaço em 2006. Agora, uma nova série de dez DVDs temáticos do “Ed Sullivan Show” (nome adotado em 1955 para substituir o original “The toast of the town”) desembarca no mercado. A coleção tem a produção executiva de Andrew Solt, que em 1980 arrematou todo o acervo de Sullivan, um simpático feioso que saltou de repórter esportivo e colunista social para o posto de celebridade do showbizz, estabelecendo um padrão de “TV entertainer” que influenciou várias gerações de apresentadores.

Os quadros musicais surgem entremeados por pertinentes comentários que situam cada música e cada artista em seu contexto histórico. Alternando imagens em preto & branco com outras coloridas, os DVDs são, em sua maioria, divididos em dois ou três temas. Alguns grupos se apresentavam realmente “ao vivo”, muitos cantores apenas cantavam sobre as bases instrumentais (o famoso BG), e outros se limitavam a realizar dublagens quando não era recomendável arriscar canto & dança em números que aliavam coreografias quase acrobáticas à arranjos musicais mais complexos.

Ícones da soul-music

Vejamos “Legends of soul/R&B greats”, por exemplo. Título mais sucinto e auto-explicativo, impossível. Na parte “Legends of soul”, um garoto cheio de chinfra chamado Stevie Wonder abre os trabalhos com “For once in my life” (por ele transformada em hit logo após a gravação fracassada de Jean DuShon), seguido por um ainda desengonçado Marvin Gaye (“Take this heart of mine”) e os integrantes do Fifth Dimension voando nos balões retratados na letra de Jim Webb para a multi-Grammyada “Up, up and away”. Uma falha grotesca repete os números de Jackie Wilson e do casal barraqueiro Ike & Tina Turner na porção “R&B greats”. Stevie Wonder, ainda mais imberbe, volta com “Fingertips”, seu primeiro estouro aos 12 anos de idade, enquanto James Brown estraçalha nos vocais, na dança e no arranjo que junta “Papa’s got a brand new bag” e “Please, please, please”. O grupo Temptations completa a festa de 45 minutos com “I can’t get next to you”.

Wonder segue brilhando com “You met your match” no DVD batizado “The soul of the motor city”, um retrato da cena de Detroit. Dividido em três partes, mais longo (70 m), abriga Diana Ross & The Supremes (“Love child”), Smokey Robinson & The Miracles (“Doggone right”) e dose tripla do Jackson 5 e The Temptations. A reverência ao som da Motown prossegue no volume dedicado exclusivamente à malemolência contagiante dos Temptations (culminando com a fantástica “Just my imagination” que ganhou versão jazzy de David Matthews no bailão de “Shoogie wanna boogie”) e à sedução vocal das Supremes, começando por “Come see about me”.

Astros do hit-parade

Um cardápio mais miscigenado ocupa dois títulos dedicados aos vitoriosos nas paradas da Billboard. “Chart toppers 65/66/67” não escapa de aberrações como a cafonice latente de Sonny & Cher (“I got you babe”), a embromação dos Herman’s Hermits (“I’m Henry The VIII, I am”), o semi-brega Tom Jones nos contorcionismos de “It’s not unusual” e a forçação-de-barra dos meninos (o baterista tinha 11 anos) Dino, Desi & Billy, cuja música “I’m a fool” devia ter sido adaptada para o plural. Mas Dean Martin, papai de um dos talentosos músicos que despontaram para o anonimato, conseguiu que o amigão de máfia e irmão-camarada Frank Sinatra, então dono do selo Reprise, contratasse o conjunto. A peneira da história felizmente funcionou e esta aparição vale como exemplo prático. Para compensar, destacam-se Johnny Rivers (“Baby I need your loving”), The Association (com a melodia de “Never my love” que gruda no ouvido), The Mamas & The Papas (“Monday monday”) e Lou Rawls soltando o vozeirão em “Love is a hurtin’ thing”.

Na compilação dedicada aos sucessos de “68/69/70” despontam The Beach Boys (“Do it again” – não confundir com o posterior hit homônimo do Steely Dan), os roqueiros do Creedence Clearwater Revival (“Proud Mary”), The Fifth Dimension entoando “Let the sunshine in” e “Aquarius”, carros-chefes do musical “Aquarius” (no Brasil a gravação mais tocada na Rádio Tamoio era, quem diria!, a de Johnny Matthis), B.J. Thomas dando novo fôlego ao hitmaker Burt Bacharach através de “Raindrops keep fallin’ on my head”, e os irmãos Richard & Karen Carpenter explodindo nas paradas em agosto de 1970 com “We’ve only just begun”, originalmente composta por Paul Williams (o poeta descartado por Ivan Lins depois de ter feito a obra-de-arte que é a letra de “Love dance”) como um jingle para o Crocker Bank.
Queridinhos fofinhos

Um dos conjuntos favoritos de Sullivan – recordista de aparições no programa, sempre com direitinhos a beijinhos nas meninas e apertos de mão nos garotos que ainda obtiam permissão para divulgar datas de shows –serve como chamativo para o DVD “The Mamas & The Papas & other ‘60s greats”. Ou seja, metade do volume é devotada ao grupo, culminando com o futuro cavalo-de-batalha (para usar uma expressão da época): “California dreamin’”, sensação do LP de estréia em 1966, “If you can believe your eyes and years” e uma canção que os guitarristas Wes Montgomery e George Benson popularizaram entre os jazzófilos sem-antolhos. Por “other ‘60s greats” leia-se The Band, The Byrds, Smokey Robinson, The Lovin’ Spoonful e novamente o Creedence em sua fase áurea.

Talvez o mais homogêneo – para não dizer o melhor – produto da série, “Rockin’ the Sixties”, com 70 minutos, divide-se em três segmentos. “San Francisco scene” reúne preciosidades do Jefferson Airplane (“Crown of creation”), Santana em sua fase primerva de criação do latin-rock (incendiando o auditório com “Persuasion”), a inigualável Janis Joplin (“Raise your hand”) e o inovador mestre do funk, Sylvester Stewart, na pele de Sly & The Family Stone arrepiando em “Everyday people/ Dance to the music”. Pena que o número do Creedence, “Down on the corner”, seja uma repetição do incluído no volume acima.

Agrupados como “Smash hits of the Sixties” estão os Beatles (“I want to hold your hand”), os Beach Boys (“I get around”) e até Petula Clark (“Downtown”), com mais uma repetição – The Mamas & The Papas juntando “Monday Monday” e “California dreamin’”. Na terceira parte, “Psychedelic Sixties”, destaque absoluto para “Light my fire” com The Doors, além de Steppenwolf, Vanilla Fudge (“You keep me hanging on”) e os Temptations (“Psychedelic shack”).

Furacão Elvis e Beatlemania

O psicodelismo some de cena em “Elvis Presley & other rock greats”. Um saudável jovem ainda longe da depressão, das bolinhas e das banhas cintila em seis temas, valendo destacar “Don’t be cruel”, “Ready Teddy” e “Peace in the valley”. O acordo de Colonel Tom Parker, o lendário empresário de Presley, com Sullivan rendeu altos dividendos para ambos os lados, trazendo uma legião de adolescentes para a audiência do programa e dando ao cantor uma espécie de atestado de respeitabilidade concedido pelo “establishment” da conformista sociedade americana da era Eisenhower, cujo conservadorismo foi colocado em xeque pelo efeito fulminante da performance altamente sexualizada de Elvis em sua estréia no show, em 9 de setembro de 1956. Sob o carimbo depreciativo de “outros grupos” o prezado leitor encontrará nada menos que Bee Gees (“Words”), Beatles (“Help!”), The Byrds (“Tambourine man”), The four Tops (“It’s all in the game”), Rolling Stones (“Satisfaction”) e – olha eles de novo! – The Tempations, que levaram “My girl” ao topo das paradas pop e r&b em 1965, sete anos antes de ser recriada por Michael Jackson no multi-platinado “Ben” de 1972.

No auge da Beatlemania, Ed Sullivan assinou um contrato com os garotos de Liverpool para quatro aparições históricas nos estúdios da CBS. A primeira, em 9 de fevereiro de 1964, quebrou todos os recordes do horário e, sintonizada por 73 milhões de pessoas, atingindo um pico de 60%, tornou-se uma das maiores audiências na TV americana em todos os tempos. O resultado pode ser conferido nos volumes “The British invasion” (no qual aparecem também The Animals com “House of the rising sun” e os Rolling Stones sapecando “Time is on my side”) e, com tiragem inicial de 5 mil exemplars, “The four complete historic Ed Sullivan shows featuring The Beatles”.

Este último DVD, duplo, de fato uma imperdível viagem no tempo, traz os quatro programas (de uma hora de duração cada) na íntegra. Traduzindo: além das vinte músicas cantadas pelos Fab Four, foram preservadas todas as outras apresentações. Do jazzman/showman Cab Calloway (“St. James Infirmary”) à cantriz Tessi O’Shea, passando por números de ilusionismo, mágica, equilibrismo e pelo comediante Myron Cohen (convidado 47 vezes para o show!), com direito às propagandas mostradas nos intervalos. O menu oferecido pelos Beatles? “She loves you”, “Please please me”, “”Ticket to ride”, “Yesterday”, “I want to hold your hand” (tocada em três ocasiões) e por aí vai, gerando histeria e consolidando a invasão britânica. Tio Ed, que adorava discutir baseball com Mickey Mantle, falar sobre golfe com Sam Snead e contracenar com o ratinho Topo Gigio chegava enfim, junto com os Beatles, ao ápice da popularidade, transformando-se em instituição da TV americana. Divirtam-se.

Legendas:

“Elvis Presley e os Beatles com o apresentador Ed Sullivan”
“Os Beatles conquistam a América através do Ed Sullivan Show”
“Os astros de maior sucesso disputavam espaço no show de Ed Sullivan”

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