Sunday, May 27, 2007

A volta do verdadeiro Jack Johnson









A volta do verdadeiro Jack Johnson
Arnaldo DeSouteiro
Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 30 de Dezembro de 2004 e publicado originalmente pelo jornal "Tribuna da Imprensa"

Hoje à noite, em rede nacional, a TV americana PBS exibe “Unforgivable blackness: the rise and fall of Jack Johnson”, novo documentário do diretor Ken Burns. E de quem é a trilha, lançada pela Blue Note? Isto mesmo, acertaram: do colaborador/bajulador de Burns na reacionária série “Jazz”, o almofadinha-mor Wynton Marsalis – detonador da onda retrô dos neo-boppers, que arruinou o mercado de jazz nos EUA mas garantiu fortuna ao trompetista gabola. Exatamente como acontece com os executivos e banqueiros que quebram suas empresas, provocam tsunamis de desemprego, mas permanecem com suas fortunas particulares a salvo na Suiça, debochando da humanidade.

Depois de reinar por duas décadas na Sony, mandando e desmandando até no chefe George Butler (na verdade um simples capacho de Wynton, e outro que perdeu o emprego quando o “império” particular do reizinho desmoronou), e manipulando a crítica ajudado por comparsas como Stanley Crouch (demitido da JazzTimes em 2003, por pressão dos leitores indignados com a sua postura racista), Marsalis acabou dispensado da gravadora em 2002. No ano passado, encontrou abrigo na Blue Note, resgatado pelo mesmo Bruce Lundvall que o havia contratado para a Sony em 1981. Hoje, porém, Marsalis nem se preocupa tanto com sua produção fonográfica, até porque esta indústria, tal qual a conhecíamos, está desmoronando. Manda-chuva de toda a programação de jazz no Lincoln Center, fatura milhões de dólares por ano, exercendo seu poder com características de um tirano, capaz até de destruir a rival Carnegie Hall Jazz Orchestra, liderada por um trompetista muito superior, Jon Faddis, discípulo de Dizzy Gillespie.

E o que toda essas linhas sobre Marsalis tem a ver com o verdadeiro tema deste artigo? Bem, um psiquiatra explicaria melhor, mas vou tentar resumir o drama. Tal como qualquer pessoa recalcada e com ânsia de poder, Wynton precisou eleger um inimigo a quem deveria desbancar, para conquistar uma posição de prestígio. O “inimigo” chamava-se Miles Davis, de quem ousou debochar publicamente em várias ocasiões, forjando uma batalha entre o tal “jazz de verdade” ou “jazz puro” (existente somente nas perturbadas mentes das velhinhas puristas fofoqueiras, desempregadas blogueiras onanistas) e o “impuro” (criado por Miles após a fusão do jazz-rock estabelecida via “Bitches brew”). Criou-se um clima de tensão tão ridículo, e tão insuportável, a ponto de Miles optar por deixar a Sony (então Columbia), já que era impossível permanecer no mesmo selo do rábula.

Miles, além de contar detalhes do concerto, em 1986, em que mandou a banda parar de tocar quando Wynton tentou dar uma canja (“cara, se manda da porra deste palco”) faz comentários precisos em sua biografia: “Ele já tinha falado muito mal de mim nos jornais, televisão, revistas...música pra mim não é competição, é cooperação...Mas quanto mais famoso ele se tornava, mais dizia coisas feias e desrespeitosas sobre mim. A princípio fiquei surpreso, depois aquilo me enfureceu. A imprensa tentava pôr um contra o outro...o punham acima de Dizzy e de mim no jazz, e ele sabia que não chegava nem perto do que nós tínhamos feito...”, arremata o iconoclasta que levou o jazz tradicional a nocaute.

Saga jazzística

Nem a morte de MD, em 1991, arrefeceu esta obsessão doentia. Wynton segue atacando Miles sempre que pode. E o mais recente capítulo deste descaramento é ter implorado para fazer a trilha deste novo filme sobre Jack Johnson. Pois, para quem não se lembra, Miles fez a trilha original do primeiro documentário – dirigido pelo cineasta William Clayton (que décadas depois se tornaria um dos empresários de Mike Tyson!), com roteiro de Alan Bodian – sobre o lendário campeão dos ringues no início do século, com quem Davis muito se identificava. Não apenas por adorar box e sentir-se vítima de discriminação racial. Mas também porque, segundo palavras do próprio Miles no texto do livreto, Jack, perseguido pela Ku Klux Klan na época da histórica luta contra Jim Flynn em 1912, “vivia a mil por hora, adorava carros, só bebia champagne e tinha muitas mulheres, geralmente brancas”.

Felizmente, impedindo que o falsário deturpasse a história, o selo Legacy acaba de reeditar, semana passada, com nova remasterização, a lendária trilha de Miles, “A tribute to Jack Johnson” (52m31s), lançada originalmente em 24 de fevereiro de 1971. Disposto a oferecer sua arte para reverenciar Johnson (falecido em 1946, aos 68 anos), MD barbarizou em duas longas faixas. Para variar, a crítica não entendeu nada, o departamento de vendas da Columbia também não, e “o disco foi enterrado”, segundo as palavras do próprio Miles. O tempo, claro, tratou de colocar as coisas nos seus devidos lugares. Hoje, “Jack Johnson” é um trabalho visto como essencial para se compreender a evolução de Miles, o momento em que trocou o jazz-rock pelo rock-jazz, privilegiando os grooves funkyados do baixo elétrico de Michael Henderson (craque da Motown que substituíra Dave Holland) e os “proto-punk riffs” da guitarra de John McLaughlin.

Em 7 de abril de 1970, o timaço era completado pelo ambidestro batera Billy Cobham, e por Steve Grossman (sax soprano). Herbie Hancock nem tinha sido chamado, entrou no disco por acaso ao dar uma passada no estúdio para presentear Miles com um exemplar do LP “Fat Albert Rotunda”. Acabou intimado a tocar um órgão Farfisa, do qual tirou faíscas na maior espontaneidade. Arrasaram em várias versões de “Right off” e “Yesternow”, amálgamas perfeitas da fusão jazz-rock, com trompete e guitarra liderando a orgia, estimulada incessantemente pelas viradas inacreditáveis de Cobham. Diamantes em estado bruto, que podem ser apreciados sem cortes ou edições, na caixa “The complete Jack Johnson sessions”, lançada em 2003 nos EUA.

Passos de boxeador


Este novo relançamento traz as versões “oficiais” (leia-se ultra-editadas) das duas músicas, do jeito que apareceram na prensagem original do LP. “Right off”, hiper-densa, usa o take 10 como base, incorporando trechos dos takes 11 e 12. Inclui aquele que críticos como Thom Jurek reputam como um dos melhores solos de Miles em toda a sua carreira (atacando o registro agudo com pleno domínio e total fúria, impulsionado pelo shuffle progressivo de McLaughlin), além de um solo “a capela” de trompete solicitado pelo produtor Teo Macero à Miles durante uma gravação em novembro de 69!

Solo repetido no final de “Yesternow”, com overdubs de uma pequena parte orquestral (arranjo de Macero) e o famoso trecho narrado pelo ator Brock Peters no “papel” de Jack. Teo enxertou ainda trechos de “Shh/Peaceful”, gravada em 69 com Wayne Shorter & Tony Williams para “In a silent way”, com o riff de baixo (de Michael Henderson) inspirado em Say it loud, I'm black and I'm proud" de James Brown A situação é ainda mais complexa, porque, por volta dos 14 minutos, o produtor inseriu e misturou trechos de três takes de uma gravação da música “Willie Nelson”, de fevereiro de 70, com as presenças de Holland, Chick Corea (piano elétrico), Jack DeJohnette, Bennie Maupin (clarone) e Sonny Sharrock (guitarra envenenada pelos efeitos do echoplex, engenhoca em moda naquela época). Todos não-creditados na ficha técnica do LP original.

“Quando compus essas músicas, eu treinava box com Bobby McQuillen”, revela Miles na autobiografia. “Eu tinha em mente os movimentos e aquele jogo de pés dos boxeurs. São quase passos de dança, ou como o som de um trem. Tinha essa imagem de trem na minha cabeça quando pensava num grande boxeador como Joe Louis ou Jack Johnson. Quando se pensa num peso-pesado vindo pra cima da gente, é como um trem. Jack Johnson gostava de festas, de se divertir, de dançar. A questão na minha mente era: pode-se fazer do ritmo do trem uma música negra, Jack Johnson dançaria com isso?” Pode apostar que sim, Miles. Já com a trilha de Wynton, somente os puristas de alma amorfa encontrarão algum balanço naquele pastiche oportunista de “blues e jazz de raiz”, raso e rasteiro, que provocaria bocejos em alguém tão dinâmico quanto Mr. Jack Johnson. Um campeão tão dinâmico e genial quanto Miles Dewey Davis!

Legenda: “Miles, levando o jazz tradicional a nocaute”

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