Thursday, May 24, 2007

Trios fenomenais em DVDs




Trios fenomenais em instigante safra de DVDs
“Keith Jarrett, Eliane Elias e Herbie Hancock brilham em shows memoráveis”
Arnaldo DeSouteiro


Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 31 de Março de 2004 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa"

Enquanto o mercado de CDs agoniza mas (ainda) não morre, a vendagem de DVDs continua crescendo na terra brasileira. Uma generosa safra de títulos acaba de desembarcar nas lojas, trazendo shows de primeiríssima qualidade para os jazzófilos. Fãs do formato piano-baixo-bateria podem se deliciar com dois volumes da série “Standards”, focalizando Keith Jarrett, Gary Peacock & Jack DeJohnette em apresentações no Japão. Similar ousadia na recriação de temas consagrados se processa no irretocável “Live at the Munich Philharmonie”, de Eliane Elias, ao lado de Jay Anderson & Adam Nusbaum. Enquanto isso, na Suíça, Herbie Hancock, Ron Carter & Billy Cobham quebram tudo em “World of Rhythm”. Todos eles com um atrativo extra: extraordinária qualidade de imagem e som, embora apenas os de Eliane e Herbie tenham sido remixados para Dolby Surround 5.1, algo que faz diferença para os audiófilos.

Trios fenomenais

Em meados dos anos 80, Keith Jarrett causou furor na cena jazzística ao trocar seu conhecido esquema de recitais de piano-solo, quase sempre totalmente improvisados, por concertos na liderança de um trio complementado por Gary Peacock (contrabaixo) e Jack DeJohnette (bateria). O primeiro disco, gravado para o selo ECM, foi um grande sucesso de vendas, logo seguido por consagradora turnê mundial. Os dois primeiros vídeos desta formação, que chegaram a ser lançados em LaserVideodisc mas estavam há longo tempo fora de catálogo, reaparecem agora em DVDs distribuídos no Brasil pela empresa paulista ST2.

O primeiro título, “Standards” (1h50m), capta excelente show realizado em Tóquio, em 15 de fevereiro de 1985, mesclando temas próprios (destaque para “So tender”, estilizada bossa nova de Jarrett) e clássicos do repertório jazzístico. Levando adiante o conceito de “trio interativo” aos moldes de Bill Evans, Scott LaFaro e Paul Motian, o pianista até começa respeitador em “I wish I knew”, mas logo vira pelo avesso “If I should lose you”. Emociona com uma singela versão de “It’s easy to remember” embalada por vassourinhas, chega ao cume da criatividade em “Stella by starlight”, e surpreende com a inesperada leitura gospel-funky para “God bless the child”, de Billie Holiday. Como bonus-track, até então inédita, o mergulho em “Delaunay’s dilemma”, de John Lewis, bis curto e eficiente.

“Standards II” (1h41m) é ainda superior, já com o trio em entrosamento telepático, fazendo delirar o público japonês em 26 de outubro de 1986. Desta vez, nada de temas de Jarrett. Apenas os ditos standards, tratados com um senso de aventura até hoje não superado por outro trio. Há baladas em climas suntuosos (“You don’t know what love is”, “Blame it on my youth”), com Keith conseguindo o milagre de extirpar o sentimentalismo meloso geralmente associado a “When you wish upon a star” e “When I fall in love”. Ainda mais espetaculares são as reinvenções de “All of you”, “Love letters” (com Jack DeJohnette roubando a cena), “On Green Dolphin Street” e o bop Gillespiano “Woody ‘n’ you”. Outra linda balada aparece na faixa-bonus, “Young and foolish”, que o espectador acessa após matar um facílimo “teste de conhecimentos”.

Aulas de fraseado

Influenciada tanto por Evans quanto por Jarrett – e nenhum demérito há nisso – a gatésima Eliane Elias estava no auge da forma quando da filmagem deste fenomenal “Live at the Munich Philharmonie” (1m05m), registrado em 1991 durante o famoso festival alemão “Klaviersommer” e agora editado em DVD via TDK. Felizmente sem cantar em momento algum, a nossa maior estrela do piano jazzístico barbariza ao longo de temas como “Campari & soda” (uma aula em matéria de “tension-release”), “Cross currents” e “Impulsive”, amostras também de seu imenso talento autoral. A recriação do standard “The way you look tonight” confirma a genialidade interpretativa de Eliane, capaz de mergulhar na essência do tema e emergir com uma abordagem inteiramente original, brincando com o tempo e flutuando sobre a harmonia numa aula de fraseado, colocando sua brilhante técnica de concertista a serviço da mais refinada musicalidade.

Os sidemen não fazem por menos, com o baixista Jay Anderson, de sonoridade volumosa e pegada firme a la Richard Davis, estraçalhando em seu improviso no primoroso “Choro”, de Hamilton “Zimbo” Godoy, professor de Eliane nos tempos do CLAM em São Paulo, nos idos de 1973, quando a menina tinha 13 anos de idade. Em seguida, o batera Adam Nussbaum, de gravações antológicas com John Scofield, dá uma aula de dinâmica durante seu solo no “Desafinado” mais arrojado que o mundo já ouviu, chegando a emular sons de frigideira na caixa-clara. Outro momento soberbo ocorre ao juntar “Águas de Março” e “Água de beber” num medley que abriu o já antológico “Eliane Elias plays Jobim” em 90 (não confundir com o equivocado “Eliane sings Jobim”). Ao vivo, porém, Eliane supera a versão de estúdio, reinventando os temas de forma esplendorosa, criando uma verdadeira fantasia-improviso sobre eles.

Trafegando por uma via estilística diferente, mas igualmente atraente, calcada nos desdobramentos do hard-bop, os compadres Herbie Hancock (piano), Ron Carter (baixo) e Billy Cobham (bateria) humilham os menos dotados em “World of Rhythm” (1m30m). Filmado pela TDK no Palazzo dei Congressi, de Lugano, na Suíça, em 26 de janeiro de 1983, vai da pauleira de “Eyes of the huricane” (piéce de resistance nos tempos do quinteto VSOP) ao lirismo de “Little waltz”, a mais conhecida das composições de Carter, passando por “Toys”, “Speak like a child” e o blues “Walkin’”. No meio do show, todos os três músicos exibem-se em estonteantes números-solo: Herbie revisita sua etérea “Dolphin dance” (uma de suas obras-primas dos anos 60), Ron esmiúça “Willow weep for me” (seu cavalo de batalha nos concertos da banda CTI All-Stars) e o ambidestro Billy mostra sua garra em “Ili’s treasure”. O jazz também tem direito a seus momentos de luxúria.

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