Monday, May 28, 2007

Reedição ampliada de 'Round about midnight


Reedição ampliada do clássico “’Round about midnight”
Disco que marcou a estréia de Miles Davis na Columbia ressurge, 50 anos depois, em CD-duplo
Arnaldo DeSouteiro

Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 14 de Julho de 2005 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa"

Enquanto, nesta terrinha de malas de dinheiro sujo, as reedições de MPB quase sempre são feitas de forma descuidada e oportunista, ocupando-se dos mesmos artistas endeusados ad nauseum, os relançamentos de jazz, no mercado americano, ocorrem geralmente de forma criteriosa e dedicada. O mais recente exemplo é a reedição, revista e ampliada, através do selo Legacy, da Sony/BMG, do álbum que marcou a estréia do iconoclasta Miles Davis (1926-1991) na Columbia, após a fase na Prestige.

“’Round about midnight – The Legacy edition” mostra bem o grau de empenho dos responsáveis por vasculhar material inédito no acervo da antiga Columbia. Originalmente lançado, em 4 de março de 1957, como um LP de seis faixas, transforma-se agora em um CD-duplo com 17 takes, mais de noventa minutos de duração, liner notes assinadas pelo Grammyado historiador Bob Blumenthal e uma pequena reflexão do empresário Gene Norman. Registrado entre outubro de 1955 e setembro de 1956, foi o álbum oficial de estréia de Miles Davis na Columbia. Iniciava-se, assim, uma associação de três décadas com a gravadora, que alavancou a carreira do trompetista, ampliando sua popularidade. O intervalo entre o início e o final das gravações teve um motivo burocrático: o acordo entre a CBS e a Prestige permitia o início das gravações, mas o lançamento do material só poderia ocorrer depois de cumprida a obrigação contratual com a Prestige.

Transição marcante

Disposto a abordar o chamado “modern jazz” com um novo approach, Miles adentrou o Studio D, da CBS, em 26 de outubro de 1955, liderando seu primeiro grande quinteto, completado por William “Red” Garland (piano), Paul Chambers (contrabaixo), Philly Joe Jones (bateria) e o ainda pouco conhecido John Coltrane (sax tenor). Naquela data gravaram quatro músicas, das quais apenas o manifesto bop “Au-leu-cha”, de Charlie Parker, entrou no LP original. As outras três faixas, agora reintegradas ao contexto graças à reedição em CD, foram usadas em discos diferentes: o hard-bop “Little Melonae” (Jackie McLean) em “Basic Miles”; “Budo” (creditada a Bud Powell & Miles, em “Jazz Omnibus”); e “Two bass hit” (parceria de John Lewis & Dizzy Gillespie) incluída na coletânea “Circle in the round”.

Em 5 de junho de 56, já no célebre estúdio da Columbia localizado na Rua 30, a mesma turma mandou ver em “Bye bye blackbird” (canção dos anos 20, de Mort Dixon & Ray Henderson, que se transformaria em clássico ao permanecer no repertório de Miles ao longo dos anos 60), “Tadd’s delight” (do “underrated genius” Tadd Dameron) e “Dear old Stockholm” (tema folclórico sueco adaptada por Stan Getz). Por fim, em 10 de setembro daquele mesmo ano, gravaram o standard “All of you” (Cole Porter, outra aula no uso de surdina), “Sweet Sue, just you” (de Victor Young, aproveitada no LP “What is jazz”) e o magnum-opus de Thelonious Monk, “’Round midnight”. Para embalar esta ponte entre o “cool” e o “hot”, a enigmática foto de Miles, flagrado com impenetráveis óculos escuros pelas lentes de Marv Koner, caiu como uma luva. E para a escolha do título do LP também contribuiu o fato de que a extraordinária performance desta balada, havia sido considerada o ponto-alto do Newport Jazz Festival, em 17 de julho de 1955.

Miles tocara com um timaço: o próprio Monk ao piano, Percy Heath no baixo, Connie Kay na batera, Zoot Sims no sax tenor e Gerry Mulligan no barítono.
Pois o disco-extra desta reedição especialíssima começa justamente com a tal versão ao vivo, captada pela Voz da América para uma transmissão radiofônica, e desencavada, ano passado, no CD-triplo “Happy birthday newport”, comentado neste espaço. “Eu não era mesmo popular na época, mas isso começou a mudar depois que me apresentei em Newport”, admite Miles em sua autobiografia. “Todo mundo ficou louco. Me aplaudiram longamente de pé. Quando desci do palco, todos me olhavam como se eu fosse um rei ou alguma coisa assim, as pessoas corriam atrás de mim oferecendo contratos para gravações. Todos os músicos me tratavam como se eu fosse um deus, e tudo por um solo que eu tivera a maior dificuldade em aprender muito tempo atrás...” Foi ali também que George Avakian decidiu contrata-lo para a Columbia.

Show inédito

A grande surpresa, entretanto, vem a seguir: um show inteiramente inédito, de aproximadamente trinta minutos, produzido pelo empresário californiano Gene Norman (fundador do selo GNP Crescendo) no Pasadena Civic Auditorium, em 18 de fevereiro de 1956. Após a espirituosa apresentação de Norman, que atuou como mestre de cerimônias, o quinteto ataca de “Chance it” (tema de Oscar Pettiford também conhecido como “Max is making wax”) e “Walkin’” (o famoso blues de comprado por Richard Carpenter). Há um breve diálogo entre Norman e Miles, relembrando que a última apresentação do trompetista tinha sido em 1951, num show que contara também com a presença de Art Blakey. Norman lamenta o longo hiato e pergunta à Davis qual o próximo tema. O trompetista balbucia o título da terna balada “It never entered my mind” da dupla Rodgers & Hart, e ouvem-se os risinhos idiotas da platéia diante da introdução rococó feita por Red Garland – por muito menos, alguns anos depois, MD teria deixado o palco sem pestanejar. Dois bops de Gillespie (“Woody ‘n you” e “Salt peanuts”) e “The theme”, usado por Miles para encerrar os shows, completam o set.

Para as novas gerações que às vezes se deixam impressionar pela grandiloqüência vazia dos puristas, que, em sua intransigente ignorância geriátrica, vivem divulgando falsas premissas (“puro jazz”, “jazz de verdade”, “jazz sem concessões” e outras baboseiras) e arrotando peseudo-conhecimentos aparentemente enciclopédicos, mas que não passam de “cultura inútil” ou grandes mentiras, torna-se imprescindível a reprodução deste trecho da autobiografia de Miles, escrita em parceria com o jornalista, poeta e professor Quincy Troupe: “Como artista, eu sempre quis chegar a tantas pessoas quanto pudesse através de minha música. E nunca me envergonhei disso. Porque nunca achei que a música chamada jazz devia chegar apenas a um pequeno grupo de pessoas, ou se tornar uma coisa de museu...Nunca fui desses que acham que quanto menos, melhor; quanto menos nos ouvem, melhores somos, porque fazemos algo demasiado complexo pra compreensão de muita gente”.

Lições de Miles

“Muitos músicos de jazz dizem em público que pensam assim, que teriam de comprometer sua arte pra alcançar muita gente. Mas em segredo também querem alcançar tanta gente quanto possam”. E continua Miles. “Sempre achei que a música não tem fronteiras, nem limites ao seu crescimento. A boa música é boa, independente do que seja. Por isso, nunca me senti mal pelo fato de muita gente passar a gostar do que eu fazia...Em 1955, a Columbia representou para mim uma abertura, um modo da minha música chegar a mais ouvintes. E eu passei por essa porta quando ela se abriu e jamais olhei para trás. A popularidade não tornava a minha música menos digna. E, sim, ir para a Columbia significava mais dinheiro, mas o que há de errado no fato de a gente ser bem pago pelo que faz?”

E para os que, no Brasil atual, faturam às custas da pobreza, glamurizando a miséria, empacotada para a burguesia expiar seus pecados nas salas multiplex, e transformando os marginais do tráfico em heróis, aí vai: “Nunca vi nenhum atrativo na pobreza, nas agruras e na tristeza. Jamais quis isso pra mim. Senti o que era aquilo quando era viciado em heroína, e não queria sentir de novo. Enquanto pudesse obter o que precisava do mundo branco, em meus próprios termos, sem me vender a toda aquela gente que adoraria me explorar, ia partir pro que sabia que era o concreto. Quando a gente cria sua própria arte, cara, nem o céu é o limite”.

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