Monday, May 28, 2007

Miles Davis em show histórico na Ilha de Wight




Miles Davis em show histórico na Ilha de Wight
Arnaldo DeSouteiro

Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 21 de Abril de 2005 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa"

Era ainda criança quando tomei conhecimento, através da revista francesa Jazz Hot, da existência de uma gravação de Miles Davis na Ilha de Wight. Naquela época, meados dos anos 70, a Jazz Hot já publicava discografias completas, e a de Keith Jarrett veio dividida em duas edições, listando todos os registros com Miles. Entre eles o tal “Call it anythin’”, incluído num álbum de título imenso “The first great rock festivals of the Seventies: Isle of Wight/Atlanta Pop Festival”. Mas que diabos de disco seria aquele, do qual nunca tinha ouvido falar? Logo eu, que me gabava de possuir todos os LPs de Miles, “importados” (a CBS nada lançava aqui da fase jazz-rock) comprados à peso de ouro na Modern Sound, Billboard e Symphony – lojas que formavam, na esquina de Barata Ribeiro com Santa Clara, um verdadeiro triângulo das bermudas para a minha mesada. Contudo, em nenhuma delas havia vestígio do meu novo objeto de desejo.

A bendita discografia na Jazz Hot citava apenas os músicos que tocavam naquela faixa com Miles, sem fornecer maiores detalhes sobre o disco, de numeração esquisita: Columbia G3X 30805. Seria um álbum triplo? Com quem mais? A dúvida e o tormento só acabaram cinco ou seis anos depois quando, na primeira visita à um paraíso chamado Roses’s Record Shop, então o melhor sebo de Nova Iorque, localizado na esquina da Sexta Avenida com a Rua 14, me deparei com o dito cujo, ao preço de 70 dólares. Era pegar ou legar aquela maravilha, realmente um LP-triplo como eu imaginara, gatefold de capa-tripla, com impecável “cover design” psicodélico de Ed Lee listando, na capa, os nomes de Jimi Hendrix, Johnny Winter, Sly & The Family Stone, Ten Years After, Miles Davis, Kris Kristofferson, Mountain, The Allman Brothers, Poco, Procol Harum, The Chambers Brothers, Cactus, Leonard Cohen e, ufa!, David Bromberg. Nessa ordem.

Claro que levei o disco para casa, quer dizer, para o hotel. Passei o resto da viagem namorando diariamente a capa, tentando imaginar os sons que estavam ali dentro. A faixa de Miles, com 17m30s, era a última, a terceira do lado B do terceiro LP. Mas não havia ficha técnica para nenhuma das faixas. Em compensação, a única foto na capa interna, gigantesca, avermelhada pela lente de Jim Marshall, captava a banda de Miles em ação, diante de uma multidão. E dava para reconhecer Dave Holland no baixo elétrico, Chick Corea no teclado que parecia (mas não era) um Fender Rhodes, e Jack DeJohnette na bateria. No lado esquerdo, um cameraman. Poxa, então “aquilo” tinha sido filmado?

Corta para 2001. Em uma banca de jornal na Barra da Tijuca, em plena Praça do Ó, uma revista traz, por R$11,90, um DVD encartado. Nome: “Message to Love – Festival da Ilha de Wight 1970”, distribuído pela firma paulista Spot Filmes. Não dava para crer. Na contracapa, entre as músicas, “Call it anythin’”. Comprei logo cinco exemplares para presentear os amigos. Afinal, além de Miles, o evento, chamado de “Woodstock britânico”, marcara a despedida de Hendrix e Jim Morrison (The Doors). Além disso, o DVD trazia nomes que, por questões contratuais, não constavam do LP-triplo: Jethro Tull, Moody Blues (tocando “Nights in white satin”!), Joan Baez, Leonard Cohen, Joni Mitchell e o trio Emerson, Lake & Palmer. A decepção ficou por conta do número de Miles, reduzido a menos de cinco minutos.

Porém, para um bom otimista, era sinal de que um dia a performance inteira, que até então julgava eu ser de 17 minutos, como no LP, ia surgir. As primeiras informações sobre o milagre vieram em 9 de outubro de 2004, quando Stephen Holden publicou, no New York Times, um artigo sobre o filme “Miles electric: a different kind of blue”, documentário que trazia a apresentação integral (38 minutos; claro, a performance havia sido editada para o LP) de Miles na East Afton Farm, no Festival da Ilha de Wight, e seria mostrado naquela noite no Walter Reade Theater, do Lincoln Center, integrando a mostra oficial do 42° New York Film Festival.

O primeiro impulso foi pegar um avião direto de Tokyo para NY. Contactei amigos do mundo inteiro em busca de maiores detalhes, e a boa notícia não tardou: o filme já tinha data marcada para lançamento no mercado japonês, em DVD, em 25 de novembro. Meu amigo, um dos editores da Swing Journal, prometia me dar uma cópia e dizia ter certeza de que em breve o DVD chegaria ao “resto do mundo”. E, do inesperado, a empresa paulista ST2 faz agora esta surpresa, distribuindo no Brasil, por módicos R$44,90 no website das Lojas Americanas (
www.americanas.com.br), a obra-prima.

Para começo de conversa, vale dizer que “Miles electric”, extraordinariamente bem produzido & dirigido por Murray Lerner, impecavelmente editado por Einar Westerlund e Edward Goldberg, já merece o título antecipado de melhor DVD lançado no Brasil em 2005. Impossível aparecer algo melhor, mais importante ou mais significativo do que esta maravilha. Além da lendária apresentação de Miles às 17hs de 29 de agosto de 1970, na íntegra, sem cortes ou interrupções, com excelente qualidade de imagem & som Dolby Digital com DTS Surround, o DVD, com tempo total de 2hs23m, traz vários depoimentos. De fãs como Carlos Santana (lembrando o som de Miles como “orgasmo espiritual”) ao ridículo crítico Stanley Crouch, tentando, inutilmente, (des)classificar o som fusion de Miles como “pop comercial”, dizendo que o trompetista queria era “ganhar dinheiro”, chamado-o de “o maior exemplo de auto-violação na história da arte, o maior vendido na história do jazz” – desde quando, sete jazzmen de primeira categoria, improvisando coletivamente um tema de 38 minutos de duração, pode ser visto como uma jogada comercial?, o que aquela catarse tem a ver com música pop?

As declarações mais significativas e esclarecedoras partem, claro, dos músicos que tocaram com Miles na Ilha de Wight (Dave Holland, Jack DeJohnette, Gary Bartz, Airto Moreira, Chick Corea e Keith Jarrett) ou em discos daquela fase, como Herbie Hancock, que fala do seu primeiro contato com um piano elétrico Fender Rhodes, graças à Miles – “achei aquilo um brinquedo, mas logo me apaixonei pela sonoridade”. O luxuoso encarte do DVD, que se transforma em poster com a foto de Jim Marshall capturando a imagem do craque num ringue de box, traz ainda excelente texto, analisando o espírito permanentemente revolucionário da obra do trompetista iconoclasta, captado em mais um momento de mutação.

Afinal, nove meses antes havia lançado o seminal “Bitches brew”, que apesar de hermético e viajandão, tornou-se, para desespero dos puristas, o seu disco de maior vendagem até então (agora perdeu o posto para “Kind of blue”), atingindo a marca de quinhentas mil cópias na época do lançamento nos EUA, chegando ao topo da parada de jazz da Billboard e ao 35° lugar na parada pop (apenas devido ao índice de vendagem porque, repito, o jazz-rock não tinha nada a ver com a “pop music” americana), no início de 1970.

A música ouvida na Ilha de Wight não soa menos mercurial, com o baixo elétrico do inglês Dave Holland (“para mim, sempre que Miles tocava, era um acontecimento”) em comunhão com a bateria frenética de Jack DeJohnette, reciclando os grooves assimilados de Sly e Hendrix. Na percussão, o catarinense Airto Guimorvã Moreira, então recém-agregado à banda de Miles, toca agachado no fundo do palco, perto da bateria. Ainda não tinha criado sua famosa “mesa de percussão”. Usa afochê, agogô, apitos, pandeiro, reco-reco de madeira e principalmente cuíca, que Miles adorava, usada para “responder” às frases de trompete. “Passei meses gravando e tocando com Miles, sem jamais ser formalmente contratado”, revela na entrevista. “Até que um dia perguntei para ele se eu efetivamente fazia parte do grupo. Miles disse: você não tocou ontem? Não está tocando hoje? Não vai tocar amanhã? Então? (risos). Aprendi muito com ele, que logo num dos primeiros shows que fizemos, me ensinou: Don’t bang, just play. E depois: Listen and play, de modo a me fazer entender que eu precisava interagir mais com os outros músicos da banda”.

Nos teclados, Chick Corea e Keith Jarrett, pilotando piano-elétricos das marca Hohner e RMI, respectivamente, envenenados por “ring modulators” que geravam as distorções e criavam “cores” para a música, parecem flutuar sobre a base. No saxes alto e soprano, Gary Bartz, sucedeu Steve Grossman, que gravara “Miles at Fillmore” dois meses antes, substituindo Wayne Shorter. Um pouco tímido em seu terceiro concerto com a banda, porém improvisando com fluência, evita claramente invadir o espaço de Miles. E talvez por isso mesmo não tenha durado muito tempo no grupo, sendo substituído por Dave Liebman. Ambos fornecem ótimos depoimentos, cabendo à Dave uma das mais contundentes e corajosas declarações, no capítulo destinado a desmoralizar os pseudo-críticos. “Ninguém faz exame para ser crítico de jazz”, diz Liebman. “As pessoas precisam fazer testes para conseguir qualquer emprego, até de motorista de ônibus. Mas ninguém faz exame para destruir a vida de um músico. Na minha opinião, é uma das coisas mais baixas, mais torpes, que existe”.

Hancock desmente veementemente aqueles que acusavam Miles de tocar de costas para o público: “Nunca vi isto acontecer”, garante. “Se, às vezes, Miles ficava de costas para a platéia era porque ele precisava ficar de frente para a banda, como um maestro, conduzindo-nos e dando coordenadas”. Herbie volta a brilhar no capítulo em que os músicos são convidados a homenagear Miles. No piano elétrico Fender Rhodes, o tecladista cria um improviso tão emocionante quanto o impactante solo de Airto nos caxixis, pandeiro e efeitos vocais que simulam a banda inteira, inclusive as linhas de baixo e o som do trompete de Miles, recriando um dos trechos mais fenomenais do concerto na Ilha de Wight, exatamente a célula principal de “Bitches brew”.

“O show foi um triunfo, basta ver a reação da platéia. Ilha de Wight é uma obra-prima. Miles converteu muita gente à consciência multidemensinal”, afirma Santana. A cena de saída do palco é especial. Miles encerra sua parte com uma frase cortante, pega a surdina, coloca à tiracolo a bolsa deixada no estrado da bateria, pega o caso de couro bege e vai embora sem dizer uma palavra, enquanto a banda arruma um jeito de finalizar a performance. A multidão, atônita com aquela pauleira sonora inovadora, delira. Miles volta-se por um instante, sorri e dá adeuzinho com as mãos. “Sigo meus sentimentos, e a única coisa que me faz continuar, a seguir nesse business, é meu amor pela música”, declara ao final do DVD.

Caso ainda não tenha caído a ficha do título da música, “Call it anythin’”, vai a explicação. Quando um integrante da equipe organizadora do Festival perguntou à Miles o nome da peça que acabara de tocar, a resposta foi, como sempre, curta e objetiva: “chame isso de qualquer coisa”, que também pode ser traduzida como “chame como quiser”. Questões lingüísticas à parte, não perca por nada este DVD, essencial, fundamental. Não apenas para os fãs de Miles, mas também para qualquer ser humano que queira ampliar seus conhecimentos sobre jazz, sobre música em geral, sobre a vida. A não ser que você seja daqueles puristas que morreram e esqueceram de deitar.

Legenda:


“A lendária performance de Miles Davis, no Festival da Ilha de Wight, é finalmente lançada em DVD”

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