Monday, May 28, 2007

Gillespie, Peterson e Clinton brilham na Suiça




DVDs revelam a alma de Montreux
“Gillespie, Peterson e George Clinton brilham em shows na Suíça”
Arnaldo DeSouteiro

Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 05 de Agosto de 2005 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa"

Estimulado pelo sucesso de vendas, o selo paulista ST2 segue ampliando seu catálogo de DVDs com títulos filmados no badalado Montreux Festival, odiado pelos puristas dipluros justamente por abrigar uma pluralidade de estilos. De Charles Mingus a Ray Charles, passando por Al DiMeola, Curtis Mayfield e Emerson, Lake & Palmer, os shows já lançados refletem o caráter eclético do evento criado por Claude Nobs em 1967, trazendo não apenas grandes nomes do jazz como também astros do pop, do rock e de derivados do rhythm & blues. Aos onze títulos já lançados da série “Norman Granz Jazz in Montreux”, somam-se agora mais três, creditados a Dizzy Gillespie, Oscar Peterson e Tommy Flanagan. Surgem também performances de Joe Cocker, The Moody Blues e George Clinton – este último promovendo irresistível bailão de quase três horas.

Os vídeos da série “Norman Granz Jazz in Montreux”, previamente editados em LaserDisc, reaparecem em DVD com novas capas, som Dolby, legendas em português (sempre com tropeções nas traduções) e comentários do historiador Nat Hentoff filmados, em junho de 2004, na redação do jornal novaiorquino Village Voice. Tais análises de Nat são reproduzidas nos livretos, mas permanece a falha grave de omitirem os autores das músicas. E as capas trazem apenas os anos dos shows. Para saber os dias exatos é preciso assistir aos vídeos. Na seção de “extras”, fotos de George Brunschweigh e uma galeria de ilustrações de David Stone Martin.

Dupla de trompetes

O clima de espontaneidade e relaxamento (tanto no bom como no mal sentido), típico das jam-sessions armadas por Norman Granz, está presente no DVD “Dizzy Gillespie Sextet”, captado em 14 de julho de 1977. Tanto que o título original do LP, contemplado com quatro estrelas pelo crítico John McDonough na edição de 9 de março de 1978 da revista Downbeat, era “Dizzy Gillespie Jam”. Mas, naquela noite, os acertos superaram as gafes. Com ótimo repertório e exibindo uma joie-de-vivre bem diferente do clima semi-sorumbático presente em outras jams da Pablo, os amigos de Dizzy abafaram. No piano, o jamaicano (e único branco do grupo) Monty Alexander, aplicadíssimo discípulo de Oscar Peterson. No baixo, o infalível Ray Brown, em perfeita sintonia com o subestimado batera Jimmie Smith, convocado por Granz em 77 para acompanhar também Benny Carter, Eddie “Lockjaw” Davis, Milt Jackson (os DVDs de todos esses shows já foram editados pela ST2) e Count Basie (em uma jam a ser lançada em breve).

Um dos principais astros do selo Pablo, então comandado por Granz, Dizzy contou ainda com dois solistas de alta categoria: Milt Jackson – disparado o melhor vibrafonista na história do jazz – e o “protegé” Jon Faddis, então com apenas 23 anos, mas tocando feito gente grande. Ainda estava sob a sombra da forte influência de Dizzy, a ponto de alguns críticos dizerem que, nos discos, era difícil distingui-los. Segundo a resenha de McDonough, porém, era fácil. “Faddis toca do jeito como Gillespie soava vinte anos atrás”, escreveu. Assistindo o DVD, emociona ver a admiração de Jon por seu maior ídolo, tocando os temas sem tirar o olho do mestre, de forma a evitar qualquer descompasso nas passagens em uníssono. Com um detalhe: usando um trompete “entortado” igual ao de Dizzy, que permanecia em ótima forma aos 59 anos, exibindo fraseado invejável, sem falhas na sustentação de notas e sem os problemas de embocadura que começariam a aparecer pouco depois.

Faddis, por sua vez, testava os agudos estratosféricos que o levaram a ser taxado de exibicionista, ainda que resultado natural de seu tremendo apuro técnico. Exploram “Girl of my dreams” durante quatorze minutos (Dizzy, usando surdina, começa acompanhado apenas pelo baixo de Brown), mas atingem melhor resultado gastando metade do tempo em “Get happy”, standard imortalizado por Sinatra no célebre 10 polegadas “Swing easy!” gravado para a Capitol em 1954. Segue-se um medley com as baladas “Once in a while” (DG soando mais aveludado do que nunca), “But beautiful” (emocionante solo de Milt Jackson) e “Here’s that rainy day” (a cargo de Faddis). Encerrando o set vem “The champ”, tema do próprio Dizzy, que aproveita problemas com o microfone do trompete para exibir seu talento como “entertainer”. No bis, o incendiário “Here ‘tis”, com Alexander perfeito da primeira à última nota, chegando ao ponto de, durante o solo de Brown, tocar dentro da caixa de ressonância do piano como se fosse uma “rhythm guitar”, centrando a la Freddie Green.

Pianos em ação

Na noite anterior, a platéia de Montreux tomou um susto positivo com o show do “Tommy Flanagan Trio”, backup band de Ella Fitzgerald em centenas de shows, inclusive no dia seguinte, em outro set ainda inédito em DVD. Tommy foi o pianista de Ella nos períodos 1963-65 e 1968-78. Keter Betts, excelente baixista falecido há três semanas, acompanhou a cantora durante 24 anos!, até o último show em 1993. (Não custa lembrar, gravou o histórico “Jazz samba” de Stan Getz & Charlie Byrd, e foi o escolhido por João Gilberto para o concerto no Carnegie Hall, em 64, transformado pela Verve no “Getz/Gilberto #2”). E o baterista Bobby Durham tocou com a diva entre 1973 e 1980, depois de se consagrar no trio de Oscar Peterson. Tido como um músico conservador, perfeito como sideman mas apagado como líder, Flanagan desmonta tal tese nesse vídeo.

Embora sua postura cênica seja de fato pouco expressiva, sua atuação é impactante logo ao primeiro número, “Barbados” (um dos temas menos regravados de Charlie Parker), mantendo o vigor em “Heat wave”, que não constava do LP original mas surgiu como bônus-track no relançamento em CD. Seguem-se dois medleys: o primeiro, une as comoventes baladas “Some other spring” (piano-solo) e “Easy living”, quando voltam Betts e Durham; no segundo, mais refinamento ao juntar “Star crossed lovers” e “Jump for joy”. Tommy homenageia Gillespie com o inflamado bop “Woody ’n you”, encerrando o set aos 40 minutos. Sem sair do palco, oferece como bis “Blue bossa”, estilizado tributo de outro trompetista, Kenny Dorham, ao estilo brasileiro que se tornou universal.

“Oscar Peterson solo”, filmado em 17 de julho de 1975, ano da primeira caravana da Pablo à Montreux, revela-se indispensável para os admiradores do pianista canadense. No auge do auge, o craque nos presenteia com um set irretocável, de 50 minutos. Sai logo estraçalhando em “I wished on the moon”, atingindo um nível insuperável de destreza técnica, aliada à contagiante balanço, no petardo “Mirage”. As mãos seguem voando pelo teclado em admiráveis recriações de “The more I see you”, “Indiana” e “At long last love”. Quando parecia ter esgotado todas as possibilidades do instrumento, aventura-se por um longo medley devotado ao repertório da orquestra de Duke Ellington, começando pelo prefixo “Take the A train” e finalizando com “Caravan”, passando por “Don’t get around much anymore”, “In a sentimental mood”, “I’m beginning to see the light”, “Satin doll” e “Lady of the lavender mist”. O recital poderia terminar ali, mas Peterson continua deixando a platéia em êxtase com “Cubano chant”, a lírica “If I had you” e o tour-de-force “Eight bar boogie blues”.

Boas e más surpresas

A porção não-jazzística do pacote “Live at Montreux” inclui títulos aparentemente atraentes. Porém, pelo menos um deles, focalizando a única apresentação do grupo “The Moody Blues” no Festival, em 1991, resulta em grande decepção. Quem espera ver o célebre conjunto inglês, formado em 1964, fazendo jus à fama, irá se deparar com uma auto-clonagem. Não faltam os maiores hits do conjunto, que passou por inúmeras (trans)formações ao longo dos anos. Mas chega a ser patético ouvir “Tuesday afternoon” e principalmente “Nights in white satin” (regravada pelo gênio Eumir no “Deodato 2”), da obra-prima “Days of future passed” (gravada em 1967 com a London Festival Orchestra), marco do rock progressivo e da era psicodélica, reciclados em arranjos chinfrins. Tudo bem que não seria financeiramente compensador colocar uma formação orquestral no palco. Mas daria para usar teclados analógicos como o Mellotron, popularizado pelo grupo no LP “In search of the lost chord” (68), gerador de um hino da contra-cultura, “Legend of a my mind”, ode ao guru da geração LSD, Timothy Leary.

Entretanto, desprezando o passado e aviltando os fãs, Justin Hayward (guitarra & vocal), John Lodge (baixo), Graeme Edge (bateria) e Ray Thomas (flauta) chegaram a Montreux totalmente encaretados, com uma medíocre banda de apoio incluindo dois tecladistas que usam sintetizadores digitais com timbres ridículos, parecendo tecladinhos da Atma. O pastiche também não poupa “Isn’t life strange” e “Question”, outros hits vitimados pelos arranjinhos amorfos. O batera Gordon Marshall, chamado para dobrar todas as viradas do desenergizado Edge, fica estrategicamente escondido atrás do baixista, em um plano abaixo do baterista oficial. Completando a situação ridícula, duas backing-singers fazem coreografias desengonçadas ou sacodem pandeirolas, vestidas de forma tão cafona quanto o visual yuppie adotado por Hayward e Lodge.

Em 1987, na primeira exibição de “Joe Cocker” em Montreux, o cantor e compositor inglês (então com 43 anos) soube escapar de similar vexame, driblando as armadilhas do tempo com uma atuação bem planejada. Jogou para a platéia e se deu bem com um set compacto, recheado por seus maiores sucessos, sabiamente escalados. Do disco de estréia em 69, “With a little help from my friends”, que teve Laudir de Oliveira na percussão, sacou a faixa-título (a mais bem sucedida regravação de uma música dos Beatles em todos os tempos!) e a de abertura, “Feeling alright”, de Dave Mason, jazzificada por Hubert Laws em “Crying song” para a CTI. Demonstrando o dom de virar “dono” das canções que interpreta, cativa o público com o romantismo de “You are so beautiful” (de Billy Preston) e três temas de Bob Dylan: “Dear landlord”, “Seven days” e “Watching the river flow”, com canja do bluesman James Cotton na gaita. Passeia ainda por Marvin Gaye (“Inner city blues”) e Randy Newman (“Guilty”), além de “Up where we belong”, tema semi-brega do filme “A força do destino”, que chegou ao topo da parada pop da Billboard em 1982.

Em matéria de “espetáculo”, nada supera a demencializante performance de “George Clinton & Parliament/Funkadelic” na edição de 2004. Ícone da black-music, estabeleceu um novo conceito de funk ao fundi-lo com elementos do rock e do soul, reciclando influências de Sly, Hendrix, Zappa, James Brown e Sun Ra (o novo guru de Ed Motta) em uma estética inovadora, que inspirou nomes como Prince. Aos 64 anos, juntou seus grupos Parliament e Funkadelic para uma festança de quase três horas no Miles Davis Hall. Seguindo um roteiro bem elaborado, com ótimos arranjos, de mansinho dominando a platéia, apimentando os grooves pouco a pouco via “Bop gun” e “Undisco kid”, já tinha a multidão a seus pés na quinta música, “Hard as steel”, cantada pela neta Sativa. Entre as mais de vinte pessoas no palco, destaque para Bernie Worrell (teclados), William “Billy Bass” Nelson (baixo), Michael Hampton (guitarra) e a fantástica violinista Lily Haydn, brilhando num solo arrepiante em “Not just knee deep”. Sem falar das lindas e sensualíssimas vocalistas Kimberly Manning (manipulando uma filmadora enquanto canta) e Kendra Foster. Com um visual de porn-star a la Careena Collins em sua fase áurea, a ultra-gostosa Kim, luva rendada na mão esquerda, top com barriguinha de fora e calça preta, contribui para o transe geral com coreografias sedutoras. No final, em “Atomic dog” e “Whole lotta shakin’”, até Claude Nobs está de joelhos no palco, enlouquecido, tocando gaita. O pancadão de Clinton provocou o maior jazz em Montreux!

Legendas:
“Dizzy Gillespie comandou inspirada jam-session em 1977”
“O pancadão de George Clinton abalou as estruturas de Montreux em 2004”

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