Monday, May 28, 2007

Dom Um Romão, primeiro e único







Dom Um Romão, primeiro e único
“Faleceu, aos 79 anos, um dos maiores bateristas e percussionistas da história da música”
Arnaldo DeSouteiro

Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro e originalmente publicado no jornal "Tribuna da Imprensa"

Em 26 anos de coluna na Tribuna da Imprensa, sempre procurei evitar que os meus artigos virassem obituários semanais. Decisão difícil, porque existem períodos em que perdemos vários grandes músicos (não necessariamente “famosos”) em um único mês. Minha opção foi a de reverenciar estes artistas através de análises sobre os relançamentos de seus discos, ao invés de me deter em retrospectivas biográficas. Justamente o caminho oposto ao adotado pelos embromadores de conhecimentos pseudo-enciclopédicos, completamente desatualizados, e que precisam disfarçar esta desinformação inventando artigos tipo “se fosse viva, a mãe de Louis Armstrong faria hoje 256 anos”, geralmente copiados ou traduzidos de livros e revistas estrangeiras.

Abri exceções, claro. Geralmente por conta do falecimento não de jazzmen estrangeiros, mas de músicos brasileiros, ignorados pela chamada “grande imprensa”. Um dos casos mais graves foi o do Maestro Gaya, que não mereceu sequer um obituário em outros jornais. Lembro também do descaso em relação a Milton Banana, Laurindo Almeida e, mais recentemente, Juarez Araújo e Zé Bodega. Hoje escrevo, emocionado, estas linhas reverenciais a Dom Um Romão. Para resumir sua importância, não há como não recorrer a uma frase clichezada: um dos maiores bateristas e percussionistas do mundo. Em todos os tempos. Em toda a história da música.

Nos anos 80, recebi, umas cinco ou seis vezes, notícias falsas sobre a morte de Dom Um. Tudo porque, em meados dos anos 70, depois de descobrir que sofria de um câncer no intestino, sua saúde deteriorou. Seu estado era grave, inspirava sérios cuidados. Dom Um optou se tratar na Suíça, foi operado, extirparam-lhe o tumor e a maior parte do intestino grosso. Ganhou uma cicatriz imensa, mas ficou inteiramente curado. Alguns abutres, do tipo que são movidos por algo que o meu advogado chama de “obsessão mórbida”, não se conformaram. Já que Dom Um não havia morrido, os puristas empenharam-se em matá-lo espalhando boatos. Assim, volta e meia eu ficava sabendo da “morte do Dom Um”, que demorava um mês, naquele tempo sem fax nem internet, para ser desmentida. Depois da terceira vez, eu nem esquentava mais.

Foram tantos alarmes falsos que passei a achar que Dom Um era imortal. E se não fossem pelos cabelos brancos, já presentes desde a época em que comecei a idolatra-lo quando ingressou no Weather Report, em 1971, aos 46 anos, o homem parecia não envelhecer. Manteve, até o final da vida, o mesmo corpo esguio, a mesma forma física invejável, uma disposição de adolescente, um fôlego de garoto. Uma atitude refletida na sua “estética sonora”, livre de preconceitos, anti-purista, permanentemente revolucionária e evolutiva. Não parou jamais de se reinventar, era impecável no estúdio, um furacão de criatividade no palco. Tive a honra e a felicidade de contemplar inúmeros desses momentos, de usufruir de sua amizade, de sua musicalidade à flor da pele. E procurava retribuir essa dádiva dando o máximo de mim nas produções de discos e shows que idealizamos juntos. Por tudo isso, o choque foi muito maior quando chegou a notícia verdadeira de sua morte, depois de um derrame sofrido na noite de 24 de julho. Aos 79 anos, às vésperas de completar 80 anos em 3 de agosto – data que eu, juntamente com alguns de seus maiores amigos, como Marcelo Machado, Dorival Caymmi e Tárik de Souza, planejávamos comemorar com o devido fulgor.

Trajetória ímpar

Impossível comentar a carreira de Dom Um neste espaço. O mito merecia um filme (que começou a ser feito em 1999) ou pelo menos um livro – porém se deu por satisfeito e emocionou-se às lágrimas quando soube que Tárik lhe dedicara um capítulo no “Tem mais samba”, editado em 2003. Afinal, que outro músico brasileiro esteve em atividade durante tão longo período? Quem foi de Dircinha & Linda Batista à Marcelo D2 e DJ Seiji, passando por Jorge Ben, Tom Jobim, Sinatra, Tony Bennett e Robert Palmer? De Stellinha Egg e Elizeth a Urszula Dudziak e Helen Merrill, passando por Elis, Flora, Astrud, Carmen McRae e, sorry periferia, Ithamara Koorax? De Herbie Mann e Meirelles a Cannonball e Stanley Turrentine, passando por Yusef Lateef, David “Fathead” Newman e Bobby Watson? De Bonfá e Luiz Henrique a Sergio Mendes e Weather Report, passando pelo Blood Sweat & Tears? A lista é interminável, e não parou de crescer nos últimos anos. Sem falsa modéstia, constato que no período em que trabalhamos juntos, entre 1997 e 2005, sua discografia cresceu na mesma proporção dos anos 60 e 70, superando em muito a chamada “fase européia” de 77 a 96.

E se, repito, não há como resumir aqui a trajetória ímpar do intrépido craque, resta a opção de relembrar momentos marcantes. Das primeiras atuações profissionais, ainda adolescente, em cabarés da Lapa nos anos 40, à aclamação no Shibuya Philharmonic Hall de Tokyo com o Weather Report em 72, passando pelas noitadas no Beco das Garrafas, os programas nas TVs Record e Excelsior em São Paulo nos anos 60, o célebre concerto de bossa nova no Carnegie Hall em 62 (integrando o Bossa Rio de Sergio Mendes), até chegar ao ponto máximo de adoração no Jazz Café de Londres em 98, meca da cena acid-jazz. É dele a bateria na gravação de “Mas Que Nada” do LP de estréia de Jorge Ben, “Samba esquema novo” – e nos dois seguintes também. No antológico “Caymmi visita Tom”, no primeiro disco do Copa 5 (“O som”), no primeiro de Flora Purim (“Flora é MPM”) e em tantos outros registros da bossa. No estouro mundial de “Fool on the hill” remodelado pelo Brasil 66 de Sergio Mendes, do qual fez parte até 1970.

Renovação constante

Tanto no encontro histórico de “Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim” em 67, sob a regência de Claus Ogerman, como nos outros discos (“A certain Mr. Jobim”, “The wonderful world of A.C. Jobim” e “Wave”) gravados com Tom nos EUA, Dom Um desmonta a tese dos que o acusavam – por inveja, claro – de ser um baterista “barulhento”, excessivamente jazzíficado devido à influência de Elvin Jones, que ele soube reprocessar e aplicar no samba. Sua atuação é sutilíssima, suave, sem cair na monotonia, cheia de balanço insinuante. Quando era preciso vigor, também lá estava ele a postos, indicação perfeita tanto para a bossa telecotecada de Walter Wanderley como para acabar de incendiar petardos funkyados do nível de “A bad Donato”, gravado em 70, em Los Angeles, logo após desligar-se de Sergio e antes de rumar para NY a fim de ingressar no Weather Report. A essas alturas, algum leitor mais desconfiado pode achar que estamos misturando datas. Afinal, parece impossível alguém estar em tantos lugares, com tantas pessoas, ao mesmo tempo. Para Dom Um, usando uma de suas expressões preferidas, “era mole”. Embora fixo no grupo de Sergio, sempre dava um jeito de gravar também com Walter, Donato ou Astrud. “Se o Sergio tentasse me prender, aí mesmo é que eu pularia fora mais cedo”, comentava marotamente.

A franqueza de Dom Um era outra característica marcante de sua personalidade. Sempre que lhe perguntavam o motivo de ter deixado o Brasil, em 65, onde já estava consagrado e não lhe faltava trabalho, para tentar a sorte nos EUA, respondia sem pestanejar: “eu queria ficar famoso no mundo todo”. E dava o sorriso mais sincero do mundo. Exatamente por esta transparência, odiava falsidade, purismo, preconceito. Não levava desaforo pra casa, saía na porrada ao primeiro desaforo. Há dezenas de relatos de brigas que sempre terminavam de modo engraçado, com o “adversário” desmaiado no banheiro ou atingindo por uma baqueta voadora. Apesar de magro, tinha uma força física impressionante. Seu amigo Manuel Gusmão, baixista de proa da bossa, conta um episódio peculiar: “Estávamos indo para um show quando um pneu do carro furou. O motorista não conseguia encaixar o macaco e o Dom Um perdeu a paciência. Jogou longe o artefato, levantou o carro com as mãos e, diante do nosso olhar estupefato, disse: “andem logo, tão olhando o que? troquem rápido esse pneu de m..q essa p...pesa para c....”

Valem, porém, correções sobre algumas “distorções” freqüentemente divulgados. Dom Um não foi o fundador do Copa Trio – ele substituiu João Palma, que saiu para prestar o serviço militar. Não tocou em todas as faixas do “Canção do amor demais”, de Elizeth; Juquinha gravou na maioria delas, enquanto Dom Um fez apenas algumas – entre elas, a seminal “Chega de saudade”. Dom Um não viajou para NY com Flora Purim, com quem viveu por dois anos em Copacabana (esta história está contada em detalhes no texto que escrevi ao produzir, em 2001, o primeiro relançamento mundial do único LP que gravaram juntos, em 64, na fase pré-Airto; pode ser lida no site www.koorax.com/jsr.html) Continuavam amigos, mas já estavam separados quando Dom Um aceitou a sugestão de Norman Granz para ir aos EUA. Flora viajou dois anos depois, após ter conhecido Airto em SP. Aliás, pouca gente sabe que o primeiro disco gravado por Dom Um depois da mudança para os EUA – descontado, obviamente, o acidental “Cannonball’s bossa nova” em 62 – foi “Finding a new friend”, em 65, encontro de Oscar Brown Jr. (com quem ele tocava em Chicago) com Luiz Henrique (de cujo primeiro disco na Philips ele participara um ano antes).

Encontros marcantes

Não posso encerrar sem relembrar momentos da nossa amizade. Afinal, me apaixonei musicalmente por Dom Um quando ouvi, aos 4 anos de idade, o célebre “Sinatra-Jobim”. O disco todo, incluindo aquela batida de bateria, era (e continua sendo) para mim o máximo de sofisticação. Resultado: passei a gastar minha mesada caçando, no sebo Discadoro, todos os LPs de bossa nova com a sua participação. A segunda fase veio quando descobri o Weather Report, cujos discos não eram lançados no Brasil e demoravam a chegar na Modern Sound. Por uma grande coincidência do destino, no dia em que conheci, em 1975, pessoalmente Eumir Deodato, ele estava ouvindo o recém-lançado “Mysterious traveller”. Guardo até hoje a anotação feita por Deodato num papel arrancado do caderno de partitura, me recomendando a comprar aquele LP urgentemente.

Tive dois encontros rápidos com Dom Um em NY, durante escapadas dele da Suíça, onde vivia com a esposa Sabine em Lucerne. Mas a parceria profissional começou somente em 1997, quando ele veio ao Brasil, em férias, e foi assistir a um show de Ithamara Koorax com o grupo Azymuth, na Sala Funarte. Nosso reencontro no camarim, documentado em VHS doméstico, marcou uma nova etapa em nossas vidas. Da minha parte, o desejo de dar novo impulso ao meu selo JSR – e nada mais nobre do que contratar meu grande ídolo. Da parte dele, a vontade de tratar a carreira-solo de uma forma mais séria. “Eu gravei aqueles discos para a Muse, para a Pablo e para a ECM sem sair em excursão, nunca me preocupei com divulgação, gravava por gravar, mas quero fazer algo diferente agora”, disse ele.

Claro que topei de imediato o desafio. E três dias depois já estávamos em estúdio, gravando algumas faixas para o CD “Serenade in Blue”, da Ithamara, que eu estava começando a produzir. A primeira faixa foi “Bonita”, de Tom, de cuja gravação original ele tinha participado. Pedi que reproduzisse aquele som, com a vassoura no hi-hat e a baqueta cruzada sobre o aro da caixa. No primeiro take, “ao vivo” no estúdio, com Gonzalo Rubalcaba, Sergio Barroso e Nelson Ângelo, a música saiu perfeita. Não por acaso, a escolhi para ser a faixa de abertura da edição americana do disco. Quase ao mesmo tempo, eu e o co-produtor Toninho Barbosa, “o Van Gelder brasileiro”, começamos a fazer o CD de estréia de Dom Um na JSR, o primeiro disco dele gravado no Brasil desde o LP na Philips em 64. Juntamos antigos (Jadir de Castro, Gegê, Laudir de Oliveira) e novos (Fabio Fonseca, Nelson Ângelo, Marcelo Salazar, Pingarilho) amigos, e o projeto se desenvolveu organicamente. Outro Marcelo, D2, pediu para assistir às gravações e acabou convidando Dom Um para atuar em “Eu tiro é onda”, sua estréia-solo.

No meio das sessões, consegui que a produtora Federica Boccardo agendasse um show na Laura Alvim. Duas sessões superlotadas, Tárik na primeira fila, dezenas de músicos na platéia. Dom Um quebrou tudo, terminando com um número-solo no qual seu instrumento se transformava em uma bateria de escola de samba completa. “Rhythm traveller” marcou também o início da carreira do DJ Marcelinho DaLua como compositor e arranjador, em parceria com Salazar, na faixa “Jungle carnival”, sucesso instântaneo na Inglaterra, para onde rumamos em fevereiro de 98. A turnê começou no Jazz Café, em duas noites sold-out, com Dom Um liderando um octeto formado por brasileiros e ingleses, e sendo recebido como um Deus pelo público. A cena das pessoas esticando a mão para toca-lo, na passagem do palco para o camarim no segundo andar, como se fossem fiéis diante de um santo num andor, ficará para sempre como uma das mais emocionantes da minha vida.

Finda a excursão, Dom Um rumou para a Suíça. A meu pedido, voltou ao Rio para novo show no Rio no final de 98, quando Carlos Calado conseguiu também agendar datas no SESC, em SP, e gravamos o programa “Ensaio” na TV Cultura, com Fernando Faro. Montei um novo grupo para Dom Um, com músicos bem jovens como Paula Faour e Jorge Pescara, que bombou o Mistura Fina no Carnaval de 99, e isso o incentivou ainda mais. Fizemos “Street angels”, projeto de all-stars para o selo inglês Mr. Bongo, Dom viajou novamente para a Europa e, ao regressar em janeiro de 2000, começamos a gravar outro CD, “Lake of perseverance”. Um êxito sem precedentes em sua carreira, gerando vários singles e remixes que viraram hits no cenário do “dancefloor jazz”. Naquele ano, Dom Um ficou em segundo lugar como percussionista na eleição promovida entre os leitores da Downbeat, com 169 votos (atrás apenas de Tito Puente, que falecera meses antes), e em sétimo lugar entre os bateristas (à frente de Steve Gadd).

Quando o disco estourou no mercado europeu, Dom Um estava passando uma temporada em seu apartamento em Hoboken, New Jersey. Pedi que ele tomasse o primeiro avião para o Rio, mandei a passagem e, no dia de sua chegada, Tárik publicou a análise reproduzida no livro “Tem mais samba”. Escreveu ele: “O resultado é um disco que respinga energia...a audácia do solista e do produtor resultam em descobertas e invenções que suplantam de longe as discrepâncias...Numa idade em que muitos já se aposentaram cheios de glória, Dom Um Romão continua na linha de frente aperfeiçoando o imperfeito”. Em dezembro de 2001, mais uma vez a Down Beat curvou-se a Dom Um, inclusive na categoria de “beyond group”. Estivemos juntos em vários outros shows (do Piraquê ao Candem Town Jazz Festival) e produções: “Nu jazz meets Brazil”, o “Love dance” de Ithamara, “Cool bossa struttin’” num trio com Paula Faour e Gusmão, “Histórias e sonhos” do Pingarilho, “Grooves in the temple” de Jorge Pescara, e projetos ainda inéditos de Jadir, Salazar, Koorax, Lou Volpe e de jovens músicos ingleses. Se um grande amigo dele, chamado Deus, quiser, o mundo ainda ouvirá muitos novos sons de Dom Um Romão.

Legendas:
“Dom Um gravando com Jobim e Sinatra em 1967”
“Dom Um e sua banda no camarim do Jazz Café, em Londres, 1998”
“Dom Um: um dos maiores bateristas do mundo”

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