Wednesday, May 30, 2007

As bodas de ouro de Miles Davis com a Columbia





As bodas de ouro de Miles Davis com a Columbia
“Cinco CDs comemoram os 50 anos do contrato de Miles com a gravadora”
Arnaldo DeSouteiro

Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 8 de Dezembro de 2005 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa"

Na histórica data de 27 de outubro de 1955, após alguns ajustes na minuta preparada dois dias antes, Miles Davis, então com 29 anos, assinou seu contrato com a Columbia Records, cujos escritórios eram então localizados no número 799 da Sétima Avenida, em New York. “Eu queria deixar a Prestige porque eles não me pagavam nada – não o que eu julgava que valia”, escreveu Miles em sua autobiografia. “Haviam me contratado por uma ninharia quando eu era um viciado... Eu agradecia o que Bob Weinstock e a Prestige haviam feito por mim. Mas com o dinheiro e as oportunidades que a Columbia me oferecia, era hora de ir em frente”. O trompetista ainda devia à Prestige quatro discos. “De algum modo, George Avakian convenceu Bob a deixá-lo começar a gravar comigo dentro de seis meses, com a condição de que a Columbia não lançaria nenhuma música enquanto não acabassem as minhas obrigações contratuais com a Prestige.”

Celebrando os 50 anos daquele contrato que rendeu algumas das maiores obras-primas da história do jazz, cinco significativas reedições chegam ao mercado. Mais uma etapa do espetacular trabalho de arqueologia musical sobre a obra de Miles Davis (1926-1991), em sua fase na Columbia (atual Sony BMG), que já mereceu nada menos do que nove prêmios Grammy. Na eleição da Down Beat em 2005, tanto na votação dos críticos, em agosto, como na dos leitores, este mês, a caixa “Seven steps: the complete Columbia recordings of Miles Davis 1963-64” (abrigando 46 faixas em sete CDs) faturou o prêmio de melhor “Jazz Reissue”. Repetiu a proeza da caixa anterior, “The complete Jack Johnson sessions”, êxito completo também em matéria de vendas.

Os cinco novos relançamentos são justamente da fase documentada na caixa “Seven steps”. As fitas foram remixadas (quando encontrados os multi-tracks em três canais) e remasterizadas (em 24bits), fascinando por mostrar o trompetista num período de transição. Miles estava novamente à procura de um novo som. E de um novo grupo. Afinal, em março de 1963, a seção rítmica formada por Wynton Kelly, Paul Chambers e Jimmy Cobb, atuante em obras-primas como “Kind of blue” (1959, hoje com mais de dez milhões de cópias vendidas, e reeditado até em DualDisc já comentado neste espaço), havia debandado para transformar-se no trio de Kelly. Desde a saída de Coltrane, em abril de 60, vários saxofonistas (Hank Mobley, Sonny Stitt, Rocky Boyd, Sonny Rollins) e até o trombonista-mor do bebop, J.J. Johnson, além de Frank Rehak, haviam passado pelo grupo.

Fascinante transição

Por variadas razões, como incompatibilidade de temperamentos e agendas, mas principalmente falta de afinidades estéticas, o entrosamento total não rolava. Com temporada agendada no clube Blackhawk, em San Francisco, Miles acatou a sugestão de Coltrane para contratar George Coleman, que recomendou o pianista Harold Mabern. Por indicação de Paul Chambers, veio Ron Carter. Miles já estava de olho em Tony Williams, mas o baterista ainda estava compromissado com Jackie McLean. Então, no lugar de Cobb, entrou provisoriamente o classudo Frank Butler. No final de 1964 ele formaria seu “segundo grande quinteto”, com Herbie Hancock, Ron Carter, Tony Williams e Wayne Shorter, depois de experiências com os tenoristas George Coleman e Sam Rivers. Esse processo pode ser apreciado, na prática, através da audição dos CDs “Seven steps to heaven”, “In Europe”, “Four & more”, “In Tokyo” e “In Berlin”.

Iniciado em 16 & 17 de abril de 63, em Los Angeles, com Victor Feldman, Ron Carter, Frank Butler e George Coleman, “Seven steps to heaven” está para “ESP” assim como “In a silent way” para “Bitches brew”. Ou seja, o embrião de uma grande revolução. Esta nova versão em CD traz duas faixas-bônus não incluídas no LP original: o take de “So near, so far” gravado em LA, e o standard “Summer night” (aproveitado no controvertido LP “Quiet nights” que abalou a amizade entre Miles e seu melhor produtor, Teo Macero). A porção californiana inclui duas antiguidades inusitadas (“Basin street blues” e “Baby, won’t you please come home”), além de uma soberba interpretação da balada “I fall in love too easily” (sem sax mas muito sexy).

A paixão de Miles por Feldman (harmonicamente mais sofisticado do que Wynton Kelly, e influenciado por Bill Evans) não foi correspondida pelo pianista inglês. Estabilizado financeiramente no circuito de gravações em Hollywood, preferiu não trocar o certo pelo duvidoso, recusando o convite para ingressar oficialmente no grupo. Miles decidiu completar o disco em NY, mantendo Carter e Coleman, e finalmente trazendo Tony Williams (ainda com 17 anos!) e Hancock. Ensaiaram por dois dias na casa de Miles, que ficou ouvindo tudo sem sair de seu quarto, sem tocar uma nota sequer, limitando-se a informar que no dia seguinte, 14 de maio de 63, eles entrariam em estúdio. Curiosamente, Miles optou por regravar “Joshua”, “Seven steps to heaven” e “So near, so far”, escolhidas para o LP por serem consideradas superiores às gravações de Los Angeles. Pelo menos no caso de “So near, so far”, discordo totalmente, lembrando a emoção causada pela primeira audição do take gravado com Feldman, revelado ao mundo somente em 1981 no álbum-duplo “Directions”.

Concertos explosivos

Devido à briga com Teo Macero, a quem culpava pelo lançamento do LP “Quiet nights”, Miles passou a evitar os estúdios para não ter que se encontrar com o produtor. Para cumprir seu contrato com a Columbia, autorizou que vários shows fossem transformados em discos. O primeiro deles, gravado em 27 de julho de 63 no “Festival Mondial du Jazz Antibes”, em Juan-les-Pins, e lançado exatamente um ano mais tarde sob o título “Miles Davis in Europe”, deixou em êxtase o público francês. Com apresentação de Andre Francis como MC, liner-notes do célebre historiador Ralph J. Gleason (complementadas por um novo texto de Harvey Pekar, ex-crítico da Down Beat e hoje famoso via “American splendor”), traz impactantes versões de “Autumn leaves” (previamente gravada por Miles no LP “Somethin’ else”, de Cannonball Adderley, em 58, conta com fascinante solo de Ron Carter usando o arco), “Milestones” (que Miles voltou a tocar atendendo ao pedido de Williams, apaixonado pelo tema), “Joshua” (grande momento de Coleman, com Tony encaixando pulsação latina na bridge), “Walkin’” (a mil por hora), “All of you” (excelentes solos de piano e sax), e a bonus-track “I thought about you” (com explosivo solo de trompete sem surdina).

Segue-se um concerto ainda melhor, no Philharmonic Hall de NY (atual Avery Fisher Hall) em 12 de fevereiro de 64, originalmente dividido em dois discos: “My funny valentine” (lançado em 65) e “Four & more” (66). Nos bastidores, Davis anunciou que estava doando seu cachê (e o dos outros músicos!) para um fundo de ajuda aos direitos civis dos negros, o que deu ao evento também importância política. Detalhe: os músicos não haviam sido consultados, e entraram em cena espumando. “Quando caminhamos para o palco, todos iam putos da vida uns com os outros, e eu acho que essa raiva criou um fogo, uma tensão que entrou na música, e talvez tenha sido um dos motivos por que tocaram com tanta intensidade”, comenta Miles em sua autobiografia.

“Nós arrasamos naquela noite, era grande a tensão criativa. Muitas das músicas eram sincopadas, mas ninguém atravessou, nem uma vez. George Coleman tocou melhor do que eu jamais o ouvira tocar”. “Four & more” começa com “So what” (estimulada pelas chicotadas de Tony no prato de condução), seguindo-se “Walkin’” (outro solo modelar de Williams, calcado nas variações no bumbo), “Joshua” (sempre um momento de “bravura” musical para o baterista), “Go-go”, “Four” (abrigando notável diálogo entre Miles e Tony no esquema de troca de oito compassos), “Seven steps to heaven” (o quinteto parece levantar vôo!), e “There is no greater love” (Davis usa a surdina) levando a platéia ao êxtase.

Igual ou maior delírio nota-se no CD “In Tokyo”, primeiro show de Miles no Japão, no Kohseinenkin Hall, na noite de 14 de julho de 64. Também é evidente que Davis mandou Tony Williams “pegar leve”, para não assustar o público japonês. Demonstrando sua deferência aos jazzófilos nipônicos, não saiu do palco durante os solos dos outros músicos, obrigados a trajar smoking. Após a “chamada” do MC Teruo Isono, o público uiva de prazer ao ouvir o piano de Hancock na introdução de “If I were a Bell”, e suspira quando Miles acaricia “My funny valentine” de forma respeitosa, citando a intro de “I’ve got a crush on you” no final de seu primeiro “chorus”. Os solos prosseguem bem-comportados – até mesmo por parte do vanguardista Sam Rivers, substituto de Coleman – em “So what”, “Walkin’” e “All of you”. Detalhe: o show veio a ser lançado em LP somente cinco anos depois, e apenas no Japão! Takao Ogawa, que estava na platéia, assina as liner-notes.

“In Berlin” registra o primeiro concerto gravado (originalmente para uma transmissão radiofônica) com Wayne Shorter assumindo o posto de tenorista. Nascia, então, o quinteto que viria a estabelecer um novo patamar na carreira de Miles – e na história do jazz de um modo geral, redefinindo conceitos de textura, dinâmica e improvisação coletiva. Neste show, em 25 de setembro de 64, lançado em 69 na Alemanha, temas como “Milestones”, “Autumn leaves”, “So what” (Shorter mostrando seu fraseado oblíquo, Hancock respondendo com um solo cheio de dissonâncias), uma versão inédita de “Stella by starlight” e “Walkin’” adquirem nova dimensão, compensando a deficiente qualidade do som mono. Shorter logo começaria a compor especialmente para o grupo, tornando-se peça-chave em uma das melhores fases da multifacetada carreira de Miles – a mais dinâmica, revolucionária e obsessivamente criativa que o jazz conheceu.

Legendas:
“Shows na França e na Alemanha deixam as platéias em êxtase”
“A primeira e a última página de um precioso documento: o contrato de Miles com a Columbia”

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